"Não havia corpo a ser velado, estávamos com apenas dois meses de gestação, mais ou menos. O velório do meu filho foi dento de mim, de quarta a sábado, enquanto eu esperava para fazer a curetagem e sonhava com o milagre de saber que ele estava vivo".
O relato é da jornalista Viviane Bandeira, 46 anos. Ela conta como foi difícil retornar para casa após a morte do seu bebê e lembra que a maior ajuda para amenizar a dor veio de sua família.
Ser mãe é o sonho de muitas mulheres e quando a notícia de uma gravidez chega, ela vem acompanhada de expectativas. Começa-se a pensa o sexo do bebê, o nome, cores do enxoval, tipo de parto e a ansiedade para conhecer o pequeno só aumenta. Quando uma gravidez planejada é interrompida de forma inesperada, muitas mulheres vivem o luto invisível, que pode ser igual ou até mais doloroso que a perda de uma pessoa com quem conviveu.
LUTO INVISÍVEL
A psicóloga Cleópatra Loiola explica que o aborto espontâneo ocasiona uma quebra de expectativas que estavam sendo alimentadas. "O aborto espontâneo rompe um plano em que havia muito envolvimento emocional. A mulher adentra um processo de luto e instabilidade emocional, que é natural à situação de perda", explica.
Foi exatamente o que aconteceu com Viviane Bandeira. Ela estava em um dia normal de trabalho no dia 15 de outubro de 2014. Com o fim do expediente, ela foi para a casa de sua mãe para almoçar. Minutos antes de sentar à mesa, a jornalista foi ao banheiro e percebeu uma mancha de sangue em sua calcinha.
"Liguei para o consultório do obstetra e pedi pra ser atendida, avisei o Alexandre, meu marido e conversei com minha mãe, tentando deixá-la tranquila. Não sei dizer o que sentia. Era mais como um buraco imenso dentro de mim. Eu sabia que meu filho havia morrido e ao mesmo tempo queria que alguém me dissesse, garantisse, que ele ainda estava comigo. Eu precisava me agarrar em alguma pequena esperança. No consultório, o médico tentou me tranquilizar e pediu um exame de ultrassom para verificar os batimentos cardíacos. Fomos fazer o exame e o médico que fez o ultrassom, totalmente desprovido de humanidade, sentenciou: “aqui não tem nada, tá morto, não tem coração batendo”. Eu morri ali, naquela sala. O “nada” era o meu filho", lembra a jornalista.
Viviane Bandeira sofreu o aborto espontâneo numa quarta-feira e teve que ir para casa ficar em repouso. No sábado ela teve que retornar ao hospital para fazer a curetagem. "As lembranças são de um imenso vazio. Eu não gritei a minha dor, vivi a perda do meu filho numa calma aparente exterior e um turbilhão emocional interior".
A vigilante e bombeira civil Ana Paula Américo, 31 anos, também viveu essa experiência. Ela saía das sessões de ultrassonografia emocionada, cheia alegria, amor e expectativas. Ouvir os batimentos cardíacos de seu bebê era o momento mais feliz de sua vida, era como Ana Paula se comunicava com o filho, mas no dia 24 de julho de 2018 um silêncio tomou conta da sala de exames e ela não ouviu o som que lhe trazia felicidade. De repente, toda sua alegria se transformou em dor, em lágrimas. Ana Paula estava na sexta semana de gestação e aquele bebê era sua esperança, pois ela havia perdido uma filha de três anos de idade há seis meses antes de sofrer o aborto espontâneo.
"Meu mundo desabou naquele instante, pois mais uma vez a perda de um filho me pegou de surpresa. E ainda mais no mesmo dia 24 em que eu perdi meu bebê, fazia seis meses que perdi minha primeira filha, Hemilly Vitória, de 3 anos e cinco meses. A partir desse momento entrei em completo desespero, cheguei até duvidar que Deus existisse, pois não conseguia acreditar o porquê Deus mais uma vez estava permitindo essa tragédia em minha vida, que era perder dois filhos e por coincidência no mesmo dia 24", relata Ana Paula.
PERDA DO PRIMEIRO FILHO
Em julho de 2014 Ana Paula deu à luz a Hemilly Vitória. Foi uma gravidez saudável, mas sua pequena foi diagnosticada com sérios problemas de saúde. "Infelizmente na hora do parto a minha tão esperada filha foi vítima de erro médico. Desde então iniciei uma grande luta em busca da saúde da minha pequena guerreira. Lutei por 3 anos e 5 meses, mas em 24 de dezembro de 2017 eu perdi minha filha. E confesso que perdê-la foi como o fim da minha vida, pois tudo perdeu o sentido. Até que um dia tive um sonho com ela, e nesse sonho ela veio até mim e entregou um bebe nos meus braços".
Cinco meses após o falecimento de Hemilly, Ana Paula engravidou e acreditou que a segunda gravidez seria uma maneira aceitar a conviver sem sua primeira filha. "Para mim ter uma criança novamente seria como me ajudar a preencher o enorme vazio que minha filha Hemilly havia deixado. E para minha felicidade consegui engravidar pela segunda vez, e desde que descobri que seria mãe novamente uma enorme felicidade tomou conta de mim. Compartilhei essa incrível notícia com meu esposo e toda a minha família, pois todos nós vinhamos sofrendo muito com a perda da nossa Hemilly. Para nós um bebê seria como um milagre de Deus em nossas vidas, mas infelizmente minha felicidade não durou muito e com apenas seis semanas de gravidez apresentei um sangramento. Fui ao médico e ele me comunicou que eu havia tido um abordo espontâneo", lembra a vigilante.
MEDO
Após a ficha cair, Ana Paula não conseguia imaginar que seu ventre não carregava mais um bebê, foi como perder parte do seu corpo. "Com a perda vem um turbilhão de sentimento, revolta, tristeza e perguntas sem respostas. Mas mesmo depois dessas perdas ainda existe dentro de mim o sonho de ser mãe, mas infelizmente o medo de perder novamente é grande, costumo até dizer para quem me pergunta se não vou mais ter um bebê, que só quem já perdeu sabe o quanto é grande o medo de perder novamente".
Ana Paula revelou que tem o sonho de ser mãe, mas que o medo de perder mais bebê é grande. 'Só quem já perdeu sabe o quanto é grande o medo de perder novamente. Reconheço que talvez esse meu medo possa ser trabalhado através de um tratamento psicológico, pois até o momento não procurei essa ajuda e sem dúvidas seria até bom pelo meu histórico de sofrimento que já possuo. Confesso que ainda não me sinto preparada para dar início ao um acampamento psicológico.
A psicologa explica que é importante o acolhimento da própria dor e a psicoterapia. "Como disse anteriormente, a perda de um filho é dolorosa e necessita de tempo para ser processada. O luto não tem um tempo demarcado. O medo de Ana Paula é real e deve ser acolhido e entendido como sua defesa de machucados. A psicoterapia faz-se necessária para que essa mãe entenda seu próprio processo e de como irá ressignificar o que passou, podendo assim preparar-se para outra fase que pode ser a decisão de tentar novamente".
APOIO FAMILIAR
Tanto Ana Paula Américo quanto Viviane Bandeira enfrentaram uma perda gestacional e um processo de luto. Ambas estavam na sexta semana de gestação e encontraram o conforto dentro de casa, com o apoio dos esposos e de toda a família. Quando Viviane sofreu o aborto, ela já tinha a filha Laura de um ano de idade.
Cleópatra Loiola ressalta que vivenciar todo o processo de luto é o que tem que ser feito. "O apoio da família e amigos também é essencial. Passar por essa perda leva tempo e paciência, e cada pessoa terá o seu tempo necessário. O acompanhamento com psicoterapia auxilia a assimilar e cuidar dessa dor. Há psicólogos voltados à maternidade e ao luto preparados para essas demandas".
"Quem mais me ajudou a passar por isso foi Alexandre, meu companheiro, parceiro de todas as horas. Vivemos juntos a alegria da notícia de termos mais um filho e a dor da sua morte. Alex me deu sua mão e compreendeu minha dor, meu silêncio, minhas lágrimas, minha exaustão. Laura, mesmo muito pequena, com pouco mais de um ano, compreendeu que o irmãozinho ou irmãzinha que estava na barriga da mamãe virou estrela e foi morar com Papai do Céu e me deu um suporte incrível, ficando ao meu lado. Ela sentia meus momentos mais tristes – mesmo eu tentando escondê-los - e não saía de perto de mim. Meus pais, meus sogros, meu irmãos, cunhada e cunhados, toda a nossa família foram nosso suporte, cuidaram de nós e nos ajudaram a passar pelos momentos de dor", comentou Viviane Bandeira.
PAI TAMBÉM SENTE
Alexandre Mota, esposo de Viviane, ficou bastante abalado com a perda do bebê. Viviane conta que estava destroçada e que seu esposo demonstrou força e silenciou a sua dor para cuidar da dela. "Sei que, ao olhar pra mim e pra Laura, tentando manter tudo em equilíbrio, ele encontrou uma forma de aceitar a morte e de seguir em frente. Quando eu olho pro Alexandre, eu vejo um amor tão intenso e tão forte, que entendo perfeitamente que é esse amor que o impulsiona. E eu sou muito grata a esse amor, porque ele é o porto seguro da nossa família. Nossos barcos atracam nesse porto.
O AMOR NÃO MORRE
Desde a descoberta da gravidez, a mulher se conecta profundamente com o bebê e passa a viver um momento único. Quando a gravidez é interrompida, é difícil outras pessoas entenderem a dor da mulher.
"As pessoas não entendem como podemos sofrer a perda de um filho com tão pouco tempo de gravidez. Às vezes, eu nem tento mais explicar. Há coisas que ultrapassam qualquer explicação. O amor por um filho é uma dessas coisas. Não importa quanto tempo você conviva com seu filho, vai amá-lo por toda a eternidade", disse Viviane Bandeira.
Para a jornalista, é impossível superar a perda de um filho. "A gente aceita que a morte é um fato, assim como é um fato que precisamos seguir vivendo. Nosso filho morreu, mas nosso amor por ele é imortal. Nós somos pais de três filhos. Laura e Luísa sabem que têm uma irmã ou um irmão, Maria/Lucas, que é uma estrela. Há dias que são mais difíceis, que a saudade é mais dolorida, que a gente se pega olhando pras meninas e pensando como seria se estivéssemos os cinco, juntinhos, aqui. Noutros dias, a saudade é mais suave e a gente segue tranquila. Eu acredito que todos temos um tempo aqui. O do meu filho foi um tempo bem pequenininho, na minha barriga".
Cleópatra explicou ainda que o luto é um processo após uma perda ou morte e vivenciá-lo proporciona o entendimento do que se passou, a experiência das emoções que surgem (raiva, medo, tristeza), o cuidado da saúde mental do enlutado. Ao ignorar um luto, em algum momento ele irá à superfície emocional, pela necessidade de ser sentido. Cada um terá seu tempo e jeito, não há uma receita pronta do que fazer de si mesmo.
RECOMEÇO
Em 2015, Viviane e Alexandre esperavam um novo bebê. Ainda assustados, eles resolveram contar a novidade à família somente após o primeiro trimestre da gestação. Mesmo com uma gravidez tranquila, a jornalista não escondia o medo de ouvir que dos médicos que o coraçãozinho de seu bebê não estava batendo. Felizmente, sua barriga cresceu e a gravidez foi tranquila. Luísa nasceu saudável e fez somar a alegria da família. Atualmente Luísa tem 4 anos de idade e Laura tem 6.
"Pegar Luísa em meus braços, linda, saudável, foi um renascimento. Foi como chuva molhando o solo ressequido do sertão, após anos e anos de seca. Luísa me fez renascer. [...] Quando Luísa tinha quase um ano, fiz terapia com uma psicóloga, que me ajudou muito a trabalhar o luto e, depois, fiz terapias integrativas, como reiki, florais, barras de acces e thetahealing. Essas terapias me ajudaram a enxergar a minha dor e a entendê-la como parte da minha vida. Eu passei a não negar o meu luto. Meu filho morreu, isso é um fato. Eu estou aqui, viva, tenho outras duas filhas aqui comigo. Preciso fazer com que essa minha existência aqui tenha um significado. Preciso crescer, evoluir, fazer sentido. Por meus filhos? Sim, mas principalmente por mim. É o que tenho feito", conclui Viviane Bandeira.