
No livro “Origens do Cristianismo” Hoornaert aborda a evolução do papel religioso dentro do cristianismo, especialmente a transição de um modelo de fé direta, ensinado por Jesus, para uma estrutura mais hierárquica e mediada, dominada pela figura do sacerdote.
Historicamente, a humanidade sempre teve receio de se comunicar diretamente com o divino, buscando mediadores (sacerdotes) e rituais (sacrifícios, preces) para essa conexão. Jesus, no entanto, inovou ao propor uma relação filial e direta com Deus, sem a necessidade de intermediários. Nos primeiros tempos, os seguidores de Jesus viveram essa espiritualidade sem mediação, o que os fazia parecer "sem religião" para observadores externos.
Contudo, essa simplicidade não durou muito. No final do século II, a ideia de mediação religiosa reapareceu sutilmente com a formação de uma "coleção apostólica" (textos considerados canônicos). Embora essa iniciativa pudesse ter a intenção de proteger as comunidades de escritos falsos, ela acabou concentrando o poder religioso nas mãos de uma corporação clerical, principalmente os bispos. Esse processo é chamado de "Vitória do Sacerdote", marcando a predominância de um modelo organizado e ritualístico sobre o modelo mais comunitário e direto de "Mestre" (referindo-se ao modelo de Jesus). A ascensão do sacerdócio foi impulsionada também por fatores psicológicos, já que imagens e rituais religiosos ancestrais permaneciam fortes na mente das pessoas.
Uma consequência crucial dessa vitória sacerdotal foi a marginalização da mulher na Igreja. O texto detalha a situação de subordinação da mulher nas sociedades judaica e romana, onde eram confinadas a papéis domésticos e careciam de direitos e educação. Em contraste, Jesus demonstrou uma abertura e sintonia notáveis com as mulheres, conversando e interagindo com elas de forma que chocou seus próprios discípulos, como ocorreu no diálogo com a samaritana. Mulheres eram parte ativa do movimento de Jesus, servindo e acompanhando-o, embora seus papéis fossem muitas vezes descritos como de "serviço".
O escritor Eduardo HoornaertNos primórdios do cristianismo, houve uma significativa participação feminina, inclusive com a existência da "Ordem das Viúvas", mulheres que se dedicavam a trabalhos comunitários, se aprimoravam na leitura e escrita, e até atuavam como professoras. No entanto, as autoridades eclesiásticas, com o tempo, manifestaram antipatia por essa ordem, temendo um sacerdócio feminino e buscando consolidar o poder episcopal masculino. Concílios regionais e ecumênicos condenaram práticas como o "casamento espiritual" entre celibatários, culminando em discriminação contra essas mulheres.
A partir do século III, a literatura cristã perdeu o foco na igualdade de gênero. Pensadores como Tomás de Aquino e Martinho Lutero perpetuaram a visão da mulher como inferior. Os Padres da Igreja (séculos IV a VI) adotaram posturas antifeministas, focando na importância do celibato masculino para a perfeição, em detrimento do casamento, visto apenas como um contrato.
Hoornaert também ressalta o "silêncio dos teólogos" diante da crescente sacerdotalização das estruturas eclesiais e da marginalização feminina. A intervenção do imperador Constantino no Concílio de Niceia (325 d.C.) é apontada como um momento chave, onde a corte imperial e a hierarquia eclesiástica se aliaram, solidificando o poder clerical. Essa transformação não foi meramente externa, mas um processo interno de mudança de mentalidades que se estendeu por séculos, abafando movimentos contrários.
O filósofo Spinoza, no século XVII, em sua obra “Tratado Teológico-Político”, criticou essa postura, afirmando que o erro da teologia foi confundir o conhecimento com a obediência, priorizando a submissão.
Em suma, a trajetória do cristianismo de um movimento inicial de fé direta, no modelo Mestre leigo, para uma instituição hierárquica e ritualística, no modelo Sacerdote, legou profundas implicações para a sociedade em geral, especialmente para a condição da mulher.
Fonte: Eduardo Hoornaert, Origens do Cristianismo.
