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Jorge Velho, invenção paulista


Domingos Jorge Velho

Domingos Jorge Velho Foto: Divulgação

Cantado em verso e na historiografia, Domingos Jorge Velho é das mais espantosas figuras no cenário da devastação colonial brasileira. É uma espécie de figura historiograficamente canonizada por sua terra, São Paulo. E pelo Piauí.

Essa figura avulta na exaltação do bandeirantismo, arte laudatória da historiografia paulista imposta ao Brasil por um São Paulo econômica e politicamente  empoderado, sobretudo, a partir das décadas de vinte e de trinta do século passado. Nessa época ocorre uma espécie de revisionismo historiográfico para colocar essa unidade federativa como espécie de “inventora” do Brasil pela “saga” bandeirante.

No Piauí, nem é preciso paulistas se esforçarem para fazerem de Velho o seu  “herói fundador” local. Antigas narrativas em busca de mitologias conquistadoras já realçam o “pioneirismo” dele, há muito, e também do portugo-baiano Domingos Mafrense.

Recorde-se que a expressão mais eloquente que simboliza a cristalização dessa dupla de “sertanistas” foi adotada há quase cem anos, quando da composição do Hino do Piauí, nas acendradas comemorações do centenário da “independência” do Brasil. O mais celebrado poeta do Piauí, de então, diz da dupla que veio, em “aventura”, “desbravar” estes campos distantes do Piauí, na “missão do trabalho e da paz”.

É licença poética, e deveria ter ficado nisso. Historicamente, um mergulho no contexto seiscentista em que Velho e Mafrense alcançam este vale do rio Parnaíba, permite constatar que a vinda deles para estes sertões não tem heroísmo e o que possa referenciar positivamente – e muito menos ser reverenciado – quanto à obra da dupla na formação do Piauí. Mafrense latifundiou; Velho, laçou índio.

Aquela visão até romântica de coluna civilizadora construindo e unificando o Brasil por dentro, não resiste ao crivo investigativo do que de fato ocorreu. Bandeiras e bandeirantes eram, antes de mais nada, régulos da escravidão. Domingos Velho veio a estes sertões laçar nativos indígenas, prear e reduzi-los à escravidão, num lucrativo negócio de carne e energia humanas para a agro manufatura das zonas açucareiras. E da própria atividade econômica estabelecida no vale do rio Parnaíba, centrada no criatório.

Destroçar populações milenares, pilhando-lhes o chão, preando homens, mulheres e crianças para um comércio vil de gente, despojando-lhes pela violência a sua humanidade – só um entorpecimento ideológico por sua vez muito forte para aceitar isso como “justo”, “aventura”, “missão de trabalho e de paz”. Não há argumento justificador que se sustente e que atenue essa vil mancha moral das origens do Brasil e do Piauí, em particular.

Dizia-me um amigo, e estudioso, aliás, um padre: “ah! era outra ética; outra compreensão das coisas”. Outra compreensão das coisas, sim; outra ética, não. Sobretudo, porque claramente anticristã a escravidão, a fria eliminação física de seres humanos. Entre 1660 e 1711 – quando há evidências de protagonismo desses Domingos pelo vale punarenho –, a ética cristã já não sancionava essa conduta, embora padres nela incorressem como sócios da colonização. Não há justificativa eticamente aceitável para a escravidão e para a eliminação em massa, tal se deu com a população ancestral do que viria a ser a América, e o Piauí a partir do Seiscentos.

Autoridades, inclusive as eclesiásticas, levantaram a desculpa de que a guerra da colonização era “justa”, daí que seria também “justo” escravizar os derrotados, vendê-los como tal num mercado aquecido de energia laboral humana. Estuprar. Isso é o que fizeram esses régulos do bandeirismo da submissão, pilhagem e morte. Não há o que se reconhecer de “justeza” e honra nessa matança. O agora não tem motivo que “justifique” celebrar aos que historicamente impuseram “tanto horror perante aos céus” – para evocar o poeta luminar antiescravista. 

 Daí que, quando perguntam sobre a derrubada de estátuas de tiranos mundo a fora, e Brasil a dentro, respondo: o povo, elaborando a vida social no calor do tempo, tem o direito inalienável de exercer, diretamente, essa vontade. Não há crime no destronamento dos tiranos.

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Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
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