As autoridades estaduais e federais devem tratar a questão indígena no Piauí nos mesmos padrões de cuidados e preocupações do que ocorre no restante do país. Conforme o Censo de 2022, o estado tem atualmente 7.394 pessoas autodeclaradas indígenas. Em 2010, de acordo com o Censo daquele ano, eles eram apenas 2.944. Trata-se de um contingente de indivíduos que não pode ser desconsiderado e negligenciado pelo Estado do Piauí. Além do mais, seus membros devem ser incluídos como cidadãos de direitos com pleno acesso às políticas públicas e sociais implementadas.
A criação do Ministério dos Povos Originários, pelo presidente Lula, é uma demonstração clara de que a questão das terras indígenas será tratada como prioridade no Governo Federal. No Piauí, estes conflitos estão localizados no Cerrado piauiense, envolvendo indígenas e alguns pretensos representantes do agronegócio. Assim como os Yanomamis e Mundurucus, na Amazônia, sofrem com os efeitos da ação do garimpo ilegal, os indígenas piauienses têm suas terras ameaçada e casas queimadas; sofrem com o envenenamento de recursos hídricos, a exposição ao uso de agrotóxicos, com desaparecimento de animais que habitam o bioma, com o assoreamento de rios e riachos e com a falta de estradas, energia, internet, além da conivência da polícia com a grilagem, pistolagem e outras ameaças.
Essas ameaças partem de advogados, jagunços, capatazes ou guardas dos condomínios do agronegócio como e chegaram a se concretizar no Sangue, no município de Uruçuí, e em Morro D'Água e Prata, em Baixa Grande do Ribeiro, e Salto e Assentamento Rio Preto, em Bom Jesus, Laranjeiras, em Currais, Vão do Vico, em Santa Filomena, conforme relatos das lideranças indígenas identificadas pelos nomes de Deuseni (Gueguê), Adaildo, Salvador, James, Deuzuite e outros (Gamela). De acordo com esses líderes, em três dessas comunidades houve a destruição e queima de casas, ameaças de morte e até mesmo expulsão de indígenas das áreas que habitavam há muitos anos.
Cartografia social do Cerrado expõe os conflitos
Através de Cartografia Social dos conflitos que atingem povos e comunidades tradicionais da Amazônia e do Cerrado (2020), pesquisadores da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) estudaram as estratégias de desenvolvimento, mineração e desigualdades. Eles também pesquisaram e expuseram os conflitos que atingem esses povos. Também catalogaram lugares de referência, atividades produtivas, medicina tradicional, problemas enfrentados e também as coisas boas das comunidades. É uma radiografia repleta de legendas das variáveis que englobam a situação (foto abaixo).
Conflito grave e recente
O último e mais grave conflito no Piauí ocorreu em 2022, na Comunidade Salto, no município de Bom Jesus, onde houve a expulsão de indígenas motivada por uma liminar em favor de suposta proprietária expedida por um juizado da região. Após a reação dos indígenas, denunciando a ilegalidade, a liminar foi cassada pelo Tribunal de Justiça do Piauí em favor dos indígenas. Essa questão só teve um desfecho favorável a partir de uma força tarefa composta por inúmeras instituições de Estado e da Sociedade Civil em favor dos indígenas. Essa articulação foi estimulada pela então vice-governadora Regina Sousa.
Marco legal garante a inclusão
Dessa foram os indígenas precisam da proteção do Estado contra a violência, o preconceito, a discriminação das quais são vítimas e são como uma marca na vida desses indígenas, em especial no Cerrado. A partir de 1972, com a chegada dos primeiros “projeteiros” no Cerrados piauiense começaram as agressões e ameaças contra os povos Gueguê e Gamela nas comunidades do Sangue e Baixa Funda – Uruçuí; Morro D’Água I e II - em Baixa Grande do Ribeiro; Laranjeiras - em Currais; Barra do Corretim - em Bom Jesus; e Vão do Vico - em Santa Filomena, que resistem em seus territórios cercados pelas fazendas e condomínios do agronegócio no Cerrado piauiense.
No Piauí, após um longo descaso para com o povo indígena, reforçado pela falsa narrativa de que no Piauí não existem índios, somente no primeiro governo de Wellington Dias os povos originários do Piauí foram reconhecidos e amparados pelas Leis nº 7.294/2019 e nº 7.389/2020. A primeira estabelece a Política Estadual de Regularização Fundiária e a segunda reconhece formal e expressamente a existência de povos indígenas no Estado como cidadãos de direitos. A narrativa propositada de que no Piauí não existem índios os torna invisíveis.
Funai no Piauí
O marco legal efetivado na gestão de Wellington Dias garante a inclusão desses indígenas como cidadãos de direitos nas políticas públicas elaboradas e executadas pelo Estado Brasileiro. Por outro lado, a criação do Ministério dos Povos Originários e a reestruturação da FUNAI se constituem dois espaços institucionais para a proteção desses povos, que habitam o território antes do descobrimento do Brasil e nos anos 70, antes da chegada dos “projeteiros” do agronegócio nos Cerrados piauienses. A refundação da FUNAI, que teve suas ações anuladas por Bolsonaro, é uma prioridade e, nesse processo, está proposta a criação de uma unidade formal do órgão no Piauí como uma prioridade.
Dessa forma, a primeira e a mais importante é a de regularização de suas terras junto ao Instituto de Terras do Piauí – INTERPI, onde estão protocolados 20 processos que precisam ser concluídos. Sem a posse da terra os problemas que os afetam irão perdurar como empecilho para acessarem às demais políticas sociais e, principalmente, produzir alimentos para seu sustento e comercializar o excedente. Desses processos foram concluídos apenas três nas comunidades Serra Grande, em Queimada Nova - etnia Kariri - no Sudeste do Piauí no limite com Pernambuco; Canto da Várzea, Oiticica, Jenipapeiro, Itacoatiara Piripiri, Tucuns, em Piripiri, e Nazaré, em Lagoa de São Francisco - etnia Tabajaras - no Norte do Estado.
No entanto, os demais processos das comunidades Sangue em Uruçuí - povo Gueguê; Baixa Funda – Uruçuí – povo Akroá-Gamela; Morro D’Água I e II - Baixa Grande do Ribeiro; Laranjeiras - Currais; Barra do Correntim - Bom Jesus; e Vão do Vico - Santa Filomena entre outros - etnia Gamela – no extremo Sul do Piauí estão em compasso de espera, faltando documentação que embasem a conclusão desses processos.
Terra sem água
Os indígenas Kariri, de Queimada Nova, tem a posse definitiva de suas terras. No entanto, não estão produzindo devido à falta de água, pois a comunidade está situada no cristalino do Semi Árido, onde há grande dificuldade de captação de água para consumo humano, animal e para irrigação. O Instituto de Águas do Piauí tão logo foi informado sobre o problema enviou para a comunidade uma equipe de geólogos, que contou com colaboração de um radiestesista. Lá foram identificados dois pontos onde poderia encontrar água e autorizada a perfuração de dois poços que atingiram a profundidade de mais de 200 metros de profundidade, mas sem êxito.
Mas esses mesmos geólogos identificaram no território Kariri da Serra Grande, uma área cujas dimensões comportam uma barragem de médio porte, solução mais indicada para o abastecimento de água para indígenas e não indígenas que moram adjacentes ao Território. Faz-se necessário a inclusão de recursos nos orçamentos na LDO e PPA da União e do Estado, com recursos de emendas parlamentares, do tesouro estadual ou de programas federais que tratam de soluções para resolver o problema de falta de água no semiárido.
Manutenção de suas terras e não transformá-las em reservas do Agro
As comunidades indígenas que estão na região do Cerrados mantém suas áreas extremamente preservadas nos chamados baixões, onde existe água em abundância com riachos, rios e nascentes de água mineral, com alto teor de pureza, como a fonte do Morro d’Água, que é alvo da cobiça de grileiros. Essa importante fonte já foi contaminada com veneno sob o pretexto de exterminar morcegos da caverna, num grave crime ambiental, pois além de matar e afugentar os morcegos, contaminam os mananciais provocando doenças em crianças, jovens e adultos que se abasteceram ou se banharam no curso d’água. (foto abaixo).
Em todas as comunidades tem água abundante que precisa ser preservada em primeiro lugar. Além de buritizais, plantações de frutas típicas, eles coletam mel, praticam a pesca artesanal, fazem roças e tem criação de gado e galinhas. Algumas famílias criam outros animais de pequeno porte e praticam uma incipiente agricultura familiar, com pouca diversidade de cultivares. Suas terras são limítrofes com fazendas e condomínios do agronegócio no altiplano dos Cerrados e estão sendo cada vez mais confinadas entre esses empreendimentos. Em algumas comunidades constata-se grande dificuldade de comunicação por vias vicinais que cortam as propriedades e que são interrompidas no percurso pela movimentação das máquinas.
Estes povos originários vêm resistindo em seus territórios à pressão dos grandes empreendimentos agrícolas que querem incorporar as terras indígenas, plenamente preservadas. Segundo as lideranças indígenas, a estratégia dos projeteiros é desmatar praticamente toda a sua área, descumprido assim as legislações federal e estadual que estabelecem que, um mínimo de 30% (20% da Lei Federal e mais 10% de compensação devido a lei estadual) da propriedade deve ser mantida como vegetação nativa, o que não está sendo respeitado. Com esta estratégia eles pretendem incorporar as terras indígenas preservadas nos baixões como substituição às suas reservas depredadas, o que tem provocado muita tensão.
A grande reclamação dos povos originários que habitam os vales no Cerrado é a morosidade e a não conclusão dos processos protocolados no INTERPI para regularização, em definitivo, das terras que habitavam, conforme a legislação estadual, enquanto os projetos de interesse do agro são concluídos em tempo recorde, segundo denúncias das lideranças indígenas Deuzenir e Dan (Uruçuí), James (Currais) e Adaildo (Baixa Grande do Ribeiro).
Comunidade sofre pressão de fazendeiro para diminuir sua área
O caso mais emblemático é o de Laranjeiras, no município de Currais, onde a terra indígena foi delimitada e cedida, na modalidade de comodato pelo então Governo Alberto Silva, em 1972. Os marcos da área definida naquele ano, conforme mapa em poder dos indígenas, não foram respeitados por um fazendeiro de nome Camarço, que fez o geo-referenciamento de sua área deslocando seus marcos e superpondo os limites antes definidos para os Gamela. Esse processo foi feito em tempo recorde em 2021. Essa ilegalidade subtraiu as terras úmidas nas margens de um riacho onde os indígenas cultivavam suas roças, restando uma área como muita pedra e imprópria para plantio. (foto abaixo).
O documento de posse da área reivindicada pelos supostos proprietários, segundo as lideranças indígenas de Laranjeiras, nunca foi apresentado pelo suposto proprietário nas tratativas com os índios no processo de litígio. Denunciam ainda que a documentação não resiste a uma ação discriminatória sem vícios, para distinguir quais terras são públicas devolutas e quais são terras privadas para definir o domínio e se evitar embaraços de superposição de domínio.
Falta de relatório antropológico dificulta regularização de terras indígenas
Diante desse quadro, os indígenas da região dos Cerrados piauiense entraram com várias ações que tramitam na justiça, em especial na Vara Agrária do Estado e na Justiça Federal, em Floriano. Além dessas ações judiciais, processos de legalização de terras indígenas protocolados no INTERPI estão aguardando há algum tempo os relatórios após a visita para os estudos antropológicos.
Todos os casos de violência e disputa pelas terras de indígenas no Cerrado piauiense já estão em Brasília junto ao Ministério dos Povos Indígenas e à FUNAI. Técnicos deste último visitaram, já em dezembro de 2022, todas as áreas de conflitos nas comunidades indígenas no Cerrado, no trabalho de qualificação dos territórios, como primeiro passo do processo para a retomada de demarcação de terras indígenas no Piauí, que fora desarticulado no governo de Jair Bolsonaro. Na oportunidade, os indígenas reforçaram as denúncias aos agentes da FUNAI, entre elas, de constrangimento político no último processo eleitoral. (foto abaixo).
Segundo a denúncia dos indígenas, no município de Uruçuí capatazes das fazendas pressionaram os indígenas a votar em determinado candidato a presidente com ameaças de não trabalharem mais em suas áreas. Houve relato de carretas transportando veículos de passeio, zero quilômetro, para sorteio ou bingos, mas só receberia a cartela aquele que se comprometesse a votar no candidato apoiado pelo agronegócio, no caso Jair Bolsonaro.
Por outro lado, pesquisadores e consultores (antropólogos) contratados pelo INTERPI para realizar o estudo antropológico nas comunidades, condição sine qua non para dar início ao rito de regularização de terras, não concluíram seus relatórios no devido tempo. O exemplo mais emblemático é o caso do Sangue - povo Gueguê de Uruçuí, cujo trabalho de campo foi realizado há mais de 6 meses, mas cuja peça ainda não fora apensada ao processo, conforme a cacique Deusa. Essa morosidade não se sustenta se obedecidos os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência no serviço público. Aliás, a luta do povo Gueguê pelas terras que foram usurpadas na década de 1970, já dura algumas dezenas de anos e está judicializada e é do conhecimento da FUNAI.
Saúde, Educação, Produção, Comunicação e Cultura
Os indígenas piauienses sofrem com a falta de políticas públicas eficientes. Em muitas comunidades o atendimento médico é precário com a visita de médicos, dentistas e enfermeiros com intervalos que variam de um a quatro meses nos postos de saúde, e, na maioria deles as farmácias básicas estão desabastecidas. A presença de agentes comunitários de saúde é mais comum, havendo comunidades na qual o técnico é indígena e nelas residem. Um outro problema é a falta de ambulância para transportar enfermos graves, os quais seguem para as sedes municipais distantes em média 70 quilômetros, em transportes inadequados, agravando a situação do paciente.
Na área da educação os filhos de indígenas estão prejudicados desde a pandemia porque não tinham os meios de estudar remotamente por falta de pontos de internet, tablets ou celulares para acompanharem as disciplinas à distância. Além dessa questão, a falta transporte escolar adequado para as longas distâncias e a presença de muitas unidades escolares fechadas e/ou com falta material didático. Os alunos que terminam o ensino fundamental encerram seus estudos nessa fase porque os pais não têm condições de mantê-los na sede do municípios.
No setor da produção de alimento, no âmbito da agricultura familiar, apesar o potencial de recursos naturais presentes, os indígenas reclamam da falta de assistência técnica e de equipamentos como Kit’s completos para irrigação com geração de energia - (incluindo unidades fotovoltaicas) para captação , armazenamento e distribuição de água para consumo humano, animal e irrigação, doações de sementes e de equipamentos como tratores e mini tratores, despolpadores de buriti, caju, manga etc. para produção de sucos e outros produtos derivados dessas culturas como óleo de buriti, castanha, cajuína e outros produtos derivados.
Na área da Cultura e Comunicação reivindicam a construção de Ocas nas comunidades, onde não existe este equipamento, para a prática de seus rituais, reuniões da associação, cursos de capacitação, resgate da cultura, do artesanato e de sua língua mãe. Na comunicação querem a melhoria das estradas vicinais para seus deslocamentos para as sedes municipais e instalação de pontos de internet gratuitos através do Programa Piauí Conectado alimentados por Estações de Energia Solar de pequeno porte, capazes de gerar energia para as residências, captar água e movimentar a irrigação.
Este é apenas um resumo da situação dos indígenas do Piauí. Existem muitos documentos e relatos de como esse povo vem sofrendo investidas de toda a sorte pela cobiça de produtores que não se contentam com as enormes áreas que já possuem e ficam atormentando os indígenas. Há, no entanto, empreendedores que respeitam a presença dos remanescentes dos povos originários que habitavam a área hoje denominada Cerrado antes do descobrimento do Brasil.
Portanto, essas áreas não podem ser enquadradas no marco temporal que só reconhece como território indígena a terra ocupada até 5 de outubros de 1988, pois existem muitos territórios de onde esses povos foram expulsos ou removidos por força da expansão das novas fronteiras agrícolas e que ocupavam seus territórios muito antes da Promulgação da Constituição de 1988. Ou seja, esse direito é anterior à própria formação do estado brasileiro.