Em uma sessão marcada por autoritarismo, violência física e cerceamento da imprensa, a Câmara dos Deputados aprovou na madrugada desta quarta-feira (10), às 2h26, o texto-base do chamado PL da Dosimetria, projeto que reduz as penas de condenados por tentativa de golpe de Estado. A medida, patrocinada pelo centrão e pilotada por Hugo Motta (Republicanos-PB), abre caminho para que Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos e 3 meses por comandar a trama golpista, deixe a prisão em cerca de 2 anos e 4 meses, segundo cálculos da equipe do relator, Paulinho da Força (Solidariedade-SP).
Apesar de aliados do bolsonarismo insistirem há meses na anistia, o projeto aprovado trata apenas de reduzir penas — embora, na prática, isso equivalha a um benefício direto aos golpistas, inclusive ao próprio ex-presidente. Bolsonaro cumpre pena na superintendência da Polícia Federal (PF) em Brasília desde 22 de novembro, após ter violado a tornozeleira eletrônica, o que levou o ministro Alexandre de Moraes a decretar prisão preventiva ao considerar tentativa de fuga.
A proposta segue agora ao Senado, onde Davi Alcolumbre (União-AP) afirmou que pretende votá-la ainda neste ano.
Violência, autoritarismo e intimidação
A votação ocorreu após um dia de caos na Câmara. Em protesto contra seu processo de cassação, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) ocupou a Mesa Diretora e foi arrancado à força por policiais legislativos, por ordem direta de Hugo Motta. A deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), Rogério Correia (PT-MG) e Alencar Santana (PT-SP) também foram agredidos ao tentar proteger Braga. Os parlamentares registraram boletim de ocorrência e fizeram exames de corpo de delito.
Durante o tumulto, a segurança da Casa cortou a transmissão da TV Câmara e expulsou jornalistas do plenário — uma medida inédita e amplamente criticada por líderes do campo progressista. O líder do PT, Lindbergh Farias (PT-RJ), responsabilizou Motta pela escalada autoritária:
"Vossa excelência [Hugo Motta] está perdendo as condições de continuar na presidência dessa Casa... O que vossa excelência fez no dia de hoje é uma vergonha."
A oposição denunciou dois pesos e duas medidas: quando bolsonaristas invadiram e paralisaram a Câmara por 48 horas em agosto, nenhum deles foi removido com violência nem responsabilizado.
Manobra noturna e surpresa até para aliados
A decisão de pautar o projeto havia sido tomada por Motta ainda na manhã de terça (9), pegando de surpresa líderes partidários e até o próprio relator. A votação adentrou a madrugada e terminou às 3h56 com 291 votos a favor e 148 contrários, após derrotar todos os destaques.
A medida estava travada havia meses: o PL insistia na anistia total e o Senado não dava sinais de que votaria o tema. De acordo com parlamentares, uma combinação de pressões do centrão — incomodado com a candidatura presidencial ensaiada por Flávio Bolsonaro — e negociações discretas com figuras do Judiciário destravou a pauta.
Segundo o próprio Paulinho, o texto foi construído “em diálogo com lideranças partidárias e integrantes do STF”, e ele afirma que “não estamos dando anistia. Não tem anistia. As pessoas vão continuar pagando". O relator também declarou: "Vão pensar duas vezes [antes de fazer novamente]".
Porém, para parlamentares governistas e juristas críticos ao projeto, a redução na prática equivale a premiar golpistas que atentaram contra o Estado Democrático de Direito.
Como o projeto reduz penas
O PL estabelece que o crime de golpe de Estado absorve o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito — o que já reduz a pena total de Bolsonaro em 6 anos e 6 meses. O texto também flexibiliza a progressão de regime: hoje ela exige cumprimento de 1/4 da pena; a nova regra reduz para 1/6.
Outra novidade é permitir que dias trabalhados em regime domiciliar com tornozeleira contem para abater parte da pena: a cada três dias trabalhados, um dia é descontado.
Com a combinação de dispositivos, a redução do tempo em regime fechado pode variar: oposicionistas falam em 2 anos e 4 meses, enquanto outras leituras apontam para algo entre 3 anos e 4 meses e 4 anos e 2 meses — ainda muito abaixo dos 6 anos e 10 meses a 8 anos estipulados atualmente para progressão.
Bastidores: chantagem bolsonarista e disputa no centrão
Nos últimos dias, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) tentou pressionar o Congresso ao sugerir que abriria mão de sua recém-anunciada pré-candidatura presidencial caso o pai recebesse anistia. Depois recuou, dizendo que sua candidatura é “irreversível”, mas o estrago político já estava feito: líderes do centrão consideraram a atitude uma chantagem e reforçaram a oposição à anistia ampla.
Aliados relatam que Bolsonaro deu aval à redução de penas, admitindo que o projeto "não resolveria o problema dele, mas resolveria o de apoiadores". O PL, apesar de insatisfeito, concordou com a redução para tentar garantir que mais bolsonaristas condenados possam deixar a prisão antes do Natal. O líder da legenda, Sóstenes Cavalcante (RJ), afirmou:
"Jamais vamos desistir da anistia... É o degrau possível nesse momento para que as famílias possam dignamente passar o Natal em suas casas."
A manobra de Motta, contudo, é vista por adversários do bolsonarismo como parte de um plano mais amplo do centrão para isolar o clã Bolsonaro e desidratar sua influência eleitoral.
Próximos passos
O projeto segue agora para o Senado, onde deve ser votado ainda neste ano. Caso aprovado, caberá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir se veta total ou parcialmente a medida. A esquerda já sinaliza resistência, argumentando que o Congresso, ao reduzir penas de golpistas, envia um recado perigoso de impunidade logo após o STF concluir dezenas de condenações. A aprovação do PL da Dosimetria deve ser questionada na Justiça.
Fonte: Revista Fórum