As pessoas e o flanar nas asas do tempo. Pessoa, aforismo em glosa gullariana: “A arte existe porque a vida não basta”.
Aqui a história de um artista, Sebastião Mendes, que, como luva, parece vestiu o dito: realizou a obra bastante numa vida incrivelmente abreviada. Costuma-se também, lá de longe, lembrar Mozart vivendo tal circunstância da vida curta e intensamente genial.
Quem é Sebastião Mendes de Sousa? Uma pérola cintilante das artes em terras do Piauí. Viveu na era do Oitocentos.
Celso, um forte, qual jacarandá
A memória algo difusa de sua existência remonta à segunda metade do século XIX, ainda muito jovem, a perambular pelas ruas de Teresina – pessoa ligada por morada ao bairro Matinha, franja suburbana da capital piauiense naquele tempo. Pessoa empobrecida, que hoje se diria “menino” ou “garoto de rua”.
Vivia pelas ruas e outras dobras da cidade a desenhar e lavrar peças retratando pessoas e outros alvos. Foi para o Rio de Janeiro, e lá frequentou a Escola de Belas Artes da Corte. Atormentado por preconceito atroz quanto sua condição-social-étnica, de negro, cometeu suicídio, quando corria o ano de 1882.
História pouco conhecida. Selecionada para o esquecimento pelos narradores-mestres do elitismo de classe, a historiografia ganhou agora um livro muito valioso, minorando, ainda que apenas em parte, a escuridão do esquecimento que se fez abater sobre esse pro homem das artes brasílicas.
Antonio Agenor Briquet Lemos e Francisco Phelipe Cunha Paz são os autores do livro que vem publicado com o título O Suicídio do Escultor Sebastião Mendes de Sousa: a Dor do Preconceito, pela Casa da Memória da Arte Brasileira, Brasília.
Sebastião ganha essa biografia acadêmica que mais é uma porta que se abre para buscas continuadas e novas sobre o cinzelador inspirado que fez as portas da igreja de São Benedito, em Teresina, monumentalizadas pela inscrição no acervo do Patrimônio Artístico Nacional, desde 1939.
Para Ricardo Orsi, no ensaio à guisa de apresentação da obra, trata-se de uma “história que revela pelo menos duas tensões subjacentes à trajetória pessoal e ao drama do escultor Sebastião. Primeiro, no aspecto sociológico ou antropológico, a discriminação de cunho racial sofrida pelo brasileiro, dada sua condição de negro ou mestiço, diante do possível contratante, o europeu legitimado pela posição social para avaliar a condição sua ou de seu trabalho. Briquet de Lemos e Cunha Paz reviram as fontes da época, para expor à luz o indizível, detestável preconceito que o abalou.”
Uma segunda tensão vem fundida na primeira: é a preterição da arte de Sebastião, antes de tudo, pelo cânone europeu: sua obra era elaboração da “mão nativa, negra ou indígena”, reitera Orsi.
“Só assim, serpenteando a história, ou não deixando sufocarmo-nos por ela [...], se poderá, quem sabe, rever nossos mitos, olhar para as portas e entalhes da igreja de São Benedito em Teresina, Piauí, para admitirmos a reconfortante máxima de que no mundo da grande arte não há injustiça duradoura”. “Grande arte”?
A grande arte de Sebastião continua injusta e relativamente desconhecida. Não são muitas as pessoas que já pararam para contemplar as seculares portas da São Benedito, única obra de arte, no conceito estrito – tombada pelo Iphan –, que tem a cidade de Teresina.
Importa muito realçar esses estudos de Lemos e de Cunha, contributo que lavra a passagem da recordação da vida de Sebastião, da memória insistente que o salvou do esquecimento, ao estudo metódico e texto valiosos da historiografia, formas de durar além da vida-corpo.