A memória é um leito fluido sobre o qual rolam os timbres de diversas lembranças.
Nascido e criado numa cidade sertaneja, pequena, do centro-leste do Maranhão, há recordações insistentes, que, cá pra nós, nem quero mesmo delas esquecer.
Lembro vivamente do que os mais velhos diziam, então, sobre uma figura de mulher – do passado da cidade –, de apelido Boeca. Outros mais contidos, recordavam-na como “Velha Boeca” ou Raimunda Boeca.
Boeca era o que se poderia dizer uma “figura folclórica” de Passagem Franca. Prefiro falar que ela foi folclorizada pela percepção e língua do povo. Ainda não alcançamos saber o seu nome de registro...
O que se dizia de Boeca – e ainda há quem diga? Que era mulher muito ativa no cotidiano social passagense e que não esperava ninguém fazer, fazia. Mais que isso, atiçada na cabeça dos mais velhos, contemporâneos dela, dizia-se que fora namorada de um padre famoso que chefiara a paróquia de São Sebastião, vigário Joaquim da Silva Mourão.
Padre Joaquim – “muito bonito” na recordação de alguns –, morto inesperadamente, teria deixado Boeca bem forrada de casa, gados e outros agrados.
Fato é que naqueles anos finais do século XIX, primeiras décadas do XX, Boeca residia à rua Grajaú, lugar que décadas depois – até hoje – seria a casa de morada de Raimundo e Beny Paé. Nesse lugar, tinha ela sua casa, rústica, de taipa rebocada e palha, com seu bom curral, além de quintal com fruteiras.
Esse ponto da rua do Grajaú – hj. Siqueira Campos –, da casa de Boeca, por volta de 1920, indicava o final da própria rua, a partir desse ponto era a antiga “estrada de boiadas” para Matões, Bacuri da Laranjeira, Aranhim e outras povoações.
Com senso realizador, tornou-se ela uma fornecedora-vendedora qualificada de leite mugido para quem não criava mas precisava e podia comprar. Os “ricos” dispunham de seus próprios meios de abastecimento, mas tinham “vergonha” de abrir venda desse produto. Curioso: alguns notórios fazendeiros até também vendiam, mas diziam ser inciativa de suas esposas.
Mas o que ficou de lembrança sobre Boeca na geração seguinte – hoje quase que totalmente esquecida –, foi a conversa de sua relação com o vigário paroquial, cuja história e fim trágico geraram tantos rumores maldosos.
Padre Joaquim, além de chefe político local, também tinha jeito de lavrador e empreendedor: adquiriu terra de lavoura – que denominou São Joaquim –, nas imediações da sede municipal e nascentes do riacho Inhumas, aí implantando lavoura vazanteira e sítio de cultivo de fruteiras e canas. Construiu uma boa casa de sobrado, que não custou a ruir.
Acumulando com Passagem Franca, o padre também paroquiava Picos, cidade e paróquia da Senhora da Consolação, criada em 1886, desmembrada da dita Passagem. Em Picos, foi engolfado nas pesadas disputas partidárias locais, que resultaram no seu assassinado, em 1898.
Boeca teria ficado com parte dos bens do namorado e teria sabido, com esforço próprio, conservar e fazer render esse patrimônio. Há quem fale de filho/s dela com o padre, mas conversa vaga. E por ser uma mulher dona de seu destino, livre, sua memória ficou injustamente marcada por vil preconceito.
Um cronista passagense dos anos 30 a 40 teria publicado texto, certa feita, o qual encerrava, num chiste, dizendo ser “Passagem Franca: terra de Boecas e Anas Clarindas!”. Respectivas famílias teriam ficado chateadas. Por quê? Instilava-se um viés ferino do citado preconceito.
Olhando em retrospecto, essa passagense de outro tempo foi uma brasileira à frente de seu tempo. Inclusive quanto a namorar abertamente o “bonito” vigário da freguesia. A propósito, relembre-se que a própria fundadora da Passagem, dona Franca, era mulher com queda para os negócios.