
O apossamento, nos séculos latinos 17 e 18, dos vales dos rios que formariam o território do Piauí, ocorreu numa guerra injusta hoje caracterizado como etnocídio: episódio pavoroso, o sangue dos filhos da terra o chão encharcou. Quem escapou com vida foi despojado de tudo mais de sua humanidade.
“Ah! Meus caros...”, vi um professor de História redarguindo, num debate, na Ufpi: “tanto não foram eliminados que ainda hoje os há por aí”. Observação sibilina sobre os indígenas que sobreviveram até hoje à guerra permanente contra eles, a esse tipo de rompante, em geral se evoca a “justeza” da dita guerra qual imperativo civilizante. Era, lá, outra percepção do mundo afetando as nervuras da condição humana.
Houve, sim, um massacre, guerra monstruosa. O que devemos fazer não é negar o fato ou “passar panos”, porque estaríamos sendo “anacrônicos” ao examinar essa ocorrência à luz de concepções-sentimentos do agora. O que devemos fazer é dizer, sim, a verdade: houve o massacre; há massacres. E enxergar o devido acontecer, inclusive os fatores e as condicionalidades do fato. “Passar panos”, não.
Essa posição está relacionada, apropriadamente, aos usos do conhecimento do passado como sinal luminoso para a condução pelos caminhos do presente. E dizer que houve massacre na elaboração formativa da sociedade piauiense tem uma dimensão pedagógica que não deve ser sonegada às crianças e a ninguém... O poeta H. Dobal fez sua parte ao ofertar à sua geração o El-Matador:
“[...].
De sangue e de fogo
se faz um nome.
No sangue e no fogo
se desfaz a história
de muitas vidas.
A sangue e fogo
a ferro e fogo
um homem liquida
seus semelhantes.
[...].
No sangue
a crueldade desnecessária
No sangue
a violência contra os desarmados.
[...].
Ao preço de tantas vidas
Sua vida se perde
do consumo do tempo.
[...].
Sem firmeza
nos ajustes de paz.
Firme na guerra
a todos os índios.
Rápido na guerra
lança os proclamas
as derramas
de gente
farinha
cavalos e bois.
[...]
Índios e ouro
seu sonho execrando.
A lagoa dourada
o rio do Sono:
se resolve em sangue
a sede de ouro.
Os corpos no campo
para o pasto das feras.
Passados à espada
Acoroazes
Pimenteiras
Gueguezes
raça extinta
lembrança extinta
nomes nações
apagados
no próprio sangue.
Matador de índios.
A fama de seu nome
a fúria de seu nome.
Sua memória em sangue
se repete”.
(Oficina da Palavra. Poesia Reunida).
Convém falar dos matadores de ontem para se compreender os matadores de hoje. Neste momento em que escrevo morre 1 brasileiro de Covid por minuto, na média da semana. Uma mortandade inclemente contra a qual combatem vigorosamente, noutros países, reis, rainhas, presidentes e chefes de governo em geral. No Brasil, a mortandade é tida pelo governo da nação como lance de campanha da próxima eleição. Nega a gravidade da hecatombe mortal, sabota a busca do alívio, e sobre quem chora pela dor de seus mortos – diz o verdugo do regime coronaro –, que faz mimimi, isto é, que estaria chorando por uma bobagem.
Há milhões de brasileiros que seguem essa orientação política e recusam se prevenir e tratar. Pessoas cegadas pela paixão eleitoral e fixação ideológica – estúpidas – acreditando que o vírus é coisa fabricada por “comunista”.
Existe sorte como predestinação? Difícil acreditar nisso. Então não é má sorte estar o Brasil neste momento da mortandade sem fôlego nas mãos um paladino da tortura, do sofrimento extremado, enfim, do matar, da morte, da guerra de eliminação. Um inimigo ufano da proteção dos direitos humanos. Da vida.
Quem levou a vantagem maior nos massacres de ontem? O latifundiários, ainda um flagelo. Nos de hoje? Os bilionários banqueiros, aliados de pelotões de governos que, à vida, preferem abrir o chão da pátria em covas para enterrar irmãos.
