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Darwin, escravidão e decrepitude moral no Brasil


Charles darwin

Charles darwin Foto: Divulgação

A historiografia de base europeia ocidental criou o sentido de iluminação ou iluminismo para auto incensar seu passado de lutas sociais contra as estruturas marcadas pelo chamado medievo. 

Por essas expressões mais que vocabulares, assim também “renascimento”, em diversa compostagem de significados, a formação europeia tem elaborada a sua interpretação central, em robustas plataformas de conhecimento, em especial aquelas sedimentadas pela forma escrita, mas com imensa importância para o pictórico, o ritual, e outras tradições. A história e a historiografia europeias são dos europeus. 

São também sua a história dos povos e países submetidos por eles? Em termos. 

Nesse sentido, a história do Brasil não é a história da África, como não é da Europa. Idem, tomando como referência as balizas do tempo, não é a história dos habitantes do país antes da agressão mercantil-colonizadora.    

Em concreto, enquanto luzes se acendiam no chamado renascimento europeu, as trevas e a escuridão desabavam sobre a África. Enquanto o humanismo amoldava um certo cânon da conduta social-cultural no espaço europeu mediterrâneo, dilatado para as ilhas britânicas e zonas nórdicas, o país dos tupis fenecia sob um jugo da mais torpe espécie, impondo-se a escravidão aos seus naturais; o desastre humanitário se acentua com o sequestro das gentes afras ...

O dano em síntese: os europeus seguiram alargando, em seu chão, de guerra em guerra, caindo e levantando, uma espécie de liberdade, alardeada como civilizatória; aqui na América, agora o Brasil, é invertido o sinal da liberdade: implanta-se a mais radical escravização que se conhece, isto é, o cativeiro mercantil, a mais deletéria hecatombe humanitária que se conhece em tamanha escala.

Essa lembrança é para situar um fato cuidadosamente sonegado do conhecimento popular amplo: o que disse da escravidão e do próprio Brasil o famoso Charles Darwin, aliás, muito paparicado e também sonegado por aqui. Sonegado por quê? Porque perpetrou um lúcido libelo crime acusatório contra a escravidão e a elite escravista brasileiras.

Em missão de pesquisa a serviço da Inglaterra, Darwin visitou o Brasil, em 1832, e logo ao chegar, em Pernambuco, ficou negativamente impressionado com a brutalidade das pessoas e escreveu: “É uma terra de escravidão, portanto de decrepitude moral”.

Embrenhou-se pelas vastidões da costa brasileira, para conhecer os elementos de sua então já decantada flora e fauna, mas sua alma seria atingida pelo horror da escravidão, instituição arraigada no cotidiano da economia e cultura do país que visitava.

Deixou tudo registrado e tudo foi publicado na Europa. 

Sua estada na capital do Império, o Rio de Janeiro, foi a mais longa, cerca de três meses, quando fez entradas pelo entorno próspero, repleto de fazendas de lavoura e criação. E foi quando viu, ainda mais de perto, a hediondez da escravidão.     

“Dois episódios lhe marcaram profundamente. Um deles aconteceu na Fazenda Itaocaia, em Maricá, a 6- km do RJ, no dia de abril, quando um grupo de caçadores saiu no encalço de alguns escravos. A certa altura, os foragidos se viram encurralados em um precipício.

Uma escrava, de certa idade, preferiu atirar-se no abismo a ser capturada pelo capitão do mato. ‘Praticado por uma matrona romana, esse ato seria interpretado como amor à liberdade’, relatou Darwin. Mas, vindo ‘de uma negra pobre, disseram que tudo não passou de um gesto bruto’”.

Após sair do Brasil escreveu: “nunca mais ponho os pés em um país escravocrata. No Recife um jovem mulato era constante e brutalmente espancado pelo seu senhor. Até hoje, quando escuto um grito na madrugada penso que é um escravo brasileiro e tremo todo. Em Salvador e no RJ as donas de casa tinham tarrachas para esmagar as articulações dos dedos dos escravos domésticos. E aos domingos iam às igrejas, onde diziam amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. 

Darwin faz um retrato, capturado por dentro, da obscurecida alma da elite poderosa brasileira e suas vibrações incívitas. Aliás, plenamente repontadas no revés de ódio e dor do bolsomorismo.

(Agradeço ao professor Yuri Holanda a dica zapiana desse tema e a fonte: “Viagens de um naturalista ao redor do mundo”. Em 16.07.2020, 21h13). 

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Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
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