Todo começo de governo gera expectativa: o que vai acontecer? No Brasil, pelas ambiguidades de nossa cultura política e pela velha tendência à conciliação do “novo” com o “velho”, essa pergunta se desdobra em duas: O que foi dito na campanha vai valer? Se valer mesmo, o novo governo vai ter força pra fazer o que pretende? Pela polarização e virulência da campanha, as perguntas adquirem desta vez um tom mais dramático.
Analisando “a voz das urnas” e os primeiros dias da nova administração, vou ficando com uma avaliação que tenho feito: o valor ideológico ou simbólico-cultural da vitória de Bolsonaro foi maior que a vitória político-eleitoral.
A maioria do candidato eleito foi expressiva, mas, apesar da concentração dos votos de oposição no Nordeste e da nova situação no Sudeste e Sul, a votação foi dispersa: Haddad ganhou em 2.810 municípios (os menores) e Bolsonaro em 2.769 (os maiores). Os 27 Governadores são de 13 partidos diferentes; no Senado, 23 partidos estão representados e na Câmara Federal são 30, contando nos dois casos com os que não cumpriram a cláusula de barreira (um complicador a mais). Os apoios eleitorais não se traduzirão em alinhamentos políticos automáticos. Existe a dinâmica dos partidos (veja-se o conflito que Dória provoca no PSDB). Existem divergências e tensões administrativas entre governo federal e governos estaduais. Haverá disputa no Congresso Nacional, na mídia, nas ruas.
Por outro lado, há a “inércia”, a complexidade e conflitualidade da sociedade. Será que, em 2003, só faltou garra e coragem em Lula para fazer mudanças à esquerda? Não será um mito que Bolsonaro tenha essa vontade toda? E fazer mudanças à direita é mais fácil do que fazer mudanças à direita?
Em primeiro lugar, temos os marcos referências globais: a) a revolução da telemática que favorece a globalização e gera uma crise para o estado-nação (este tem limitações para definir políticas macroeconômicas mas é o responsável pela regulação do trabalho e dos conflitos sociais); b) a reestruturação produtiva redefine a centralidade do trabalho e o lugar do sindicalismo; mas, a valorização da diversidade amplia as demandas e os conflitos potenciais; c) as redes sociais estimulam novas formas de sociabilidade e ajudam na mobilização, mas não têm sido úteis na organização dos protagonistas e muito menos na implementação de ações com certa continuidade.
Em segundo lugar, os problemas estruturais da economia e da sociedade brasileira continuam como desafios concretos: a) ainda o baixo crescimento do PIB; b) ainda a baixa taxa de investimento; c) ainda a alta taxa de desemprego; d) ainda a desigualdade social, regional, de gênero e racial; d) a questão da segurança precisa apresentar resultados efetivos, que gestos simbólicos e uma legislação autoritária podem não conseguir apresentar. Este é o “calcanhar de Aquiles” de Moro.
O ambientalismo é um sentimento que penetrou na cultura, desde as escolas, e é sensível a omissões ou agressões nessa área. A diversidade tem a ver com o multiculturalismo e a individuação (direito a opções pessoais). Tudo isso ultrapassa a ação de movimentos sociais ou dos setores organizados da sociedade; tudo isso vai mais além da polarização esquerda X direita.
Em terceiro lugar, temos a complexidade e um razoável nível de vitalidade da sociedade civil: a) os setores organizados têm capacidade de pressão, às vezes corporativas; b) o empresariado tem seus conflitos internos (os industriais não concordam coma extinção do MDIC e o enfraquecimento do BNDES; o agronegócio não quer a ampla abertura para as importações, etc); c) a Constituição Federal de 1988 criou Sistemas Nacionais de Políticas Públicas (educação, saúde, assistência social e propostas na área de cultura e segurança) que podem ser debilitados, mas desativados criam o caos nas relações federativas entre União, Estados e Municípios; são políticas de estado e não de governo.
Há alguns problemas institucionais mais graves, que exigem solução sob pena de ameaçar a própria elite. A relação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou o Congresso dá um salto de qualidade (por menor que seja) ou o Judiciário continuará como protagonista, “judicializando a política”, o que é ruim, pois reforça o descrédito nos políticos e na política.
Ou o Judiciário, sobretudo os tribunais superiores, recobra sua função de magistratura ou a “politização da Justiça” continuará alimentando a insegurança jurídica e o descrédito da instituição.
E o papel das Forças Armadas. A esquerda não pode continuar vendo as Forças Armadas como “herdeiras da ditadura”; a direita não pode continuar vendo as Forças Armadas como “força policial de reforço”. Como instituição, as Forças Armadas são importantes para qualquer Projeto de Nação, no que se refere à soberania, ao sentimento de público e de estatal; e da ordem dentro do estado de direito, é claro.
Bom, ainda teríamos que considerar que o Brasil não é uma ilha. O comércio internacional de bens e capital, a circulação de pessoas e nossa participação e compromissos com organismos multilaterais, em especial a ONU - tudo isso conta. Para além do paroquialismo e do fundamentalismo fantasioso.
Não se trata de subestimar os perigos que ameaçam o país. Mas o processo histórico de maturação da democracia no Brasil é irreversível, pode ter seu ritmo reduzido, mas não pode ser detido. A não ser que se parta para uma ditadura aberta. Vamos apostar na Democracia.
Por isso, fazer política no Brasil hoje não é apenas Resistência; é também Disputa Política democrática. Não entrar no jogo da polarização, mas jogar o jogo da democracia. A Constituição de 1988 é uma boa referência. E vamos para as disputas concretas: reforma da previdência, combate à criminalidade, reforma tributária, reforma política e combate à corrupção, etc., etc. Frentes de luta é o que não falta.
(*)Antonio José Medeiros
Sociólogo, professor aposentado da UFPI
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