A igreja de Roma é uma força ordenadora estrutural na formação histórica brasileira. Respira por todos os poros da sociedade o hálito de sua presença. Da ruptura violenta com as formas de vida aqui existentes até final do século XV, aos dramas do século andante, o XXI.
De maneira que brasileiros, nenhum ou quase, navega nas ondas da vida social local sem algum tipo de relação com ela.
Eis o que me concerne.
Minha paróquia natal, Passagem Franca, na mesopotâmia entre o Itapecuru e o Parnaíba, lado maranhense, é um nicho gracioso no qual dialogam os brejos e tremedais com as serras e os escalvados. No meio deles, levantou-se uma igreja-templo já no ano histórico de 1820. Com várias formas e reformas, acha-se de pé, bonita e solene, fisicamente, e na percepção dos ritos que marcam seus dois séculos de animação cristã.
De 1964 para 1965, eu, aos 11-12 anos, já veterano das práticas do Catecismo e com sinais de que gostava de ler, professoras e minha mãe, levaram-me ao acolitato na Matriz. Meu colega de escola, Josemar do Júlio, na função de sacristão, precisou sair da cidade e me chamou a substituí-lo. O vigário aceitou. E assim se sucedeu.
Era para poucos, sobretudo nos atos litúrgicos, passar a cancela da nave grande da igreja, debaixo do arco-cruzeiro, e entrar na capela-mor, ou presbitério, lugar mais reservado. Entrar também na sacristia, ambiente reservado à guarda dos objetos litúrgicos, onde o vigário colocava as vestes rituais, que logo aprendi se chamavam paramentos. Senti-me um privilegiado, distinguia-me em relação aos outros garotos.
Aliás, entrar na intimidade da igreja, conhecer todos os cantos, recantos, o nome das alfaias – outro termo diferente para aprender –, era para poucos. Ver os “santos” de pertinho, e até pegar em suas imagens. Subir a escada do coro, que também levava à torre sineira.
Quase ninguém na rua, até gente grande, sabia o que era, por exemplo, um turíbulo, a naveta, mirra, patena, âmbula, galhetas; poucos sabiam a diferença de castiçal e arandela, alva e casula, estola e sobrepeliz. Logo aprendi que a custódia é ostensório, que no sacrário só se guarda hóstias, nunca partículas sem consagração.
Uma oportunidade ímpar, aos 11 anos, saber, praticando, ajudar na missa, manusear o Missal Romano – ensinado pelo mestre-sacristão-mais-velho, Sebastião Ventura. Enfim, ter um pouco mais de entendimento das diversas partes da liturgia, os textos, gestos – de sacerdote, acólitos, fiéis participantes em geral. Saber o momento exato de cada movimento: o ajoelha e levanta, a colocação dos livros, a incensação, o toque da campa, nos “dias grandes” a matraca...
Mais: acolitar em batizados, casamentos, missas e féretros, procissão do viático para extrema-unção. Saber as linguagens dos dobres dos sinos. Os modos de comportamento dos fieis dentro do templo: um vestir sem devassas, silêncio respeitoso, não cruzar as pernas, pentear cabelo... Eventualmente apagada a luz do Santíssimo, nas ausências mais prologadas do vigário, podia-se relaxar um pouco.
Exercer as funções do ofício de “são cristão” – pessoas muito simples assim diziam – significou para mim uma espécie de segundo emprego, que acumulei com o trabalho numa quitanda em rua ao lado da Matriz. A remuneração consistia na espórtula sobre os atos de Consagração, dobres de sino para defuntos, preparo de liturgias dos atos das associações, como a de São José.
Na época dos festejos, do Padroeiro, marianos, Semana Santa, o vigário aumentava os agrados, sobretudo quando nas noites dos bons leilões.
O maior ganho que obtive foi, sobretudo, o conviver na ambiência sacerdotal, lugar de bem falar, ler papeis da correspondência paroquial, ouvir excelente música. A casa paroquial tinha a maior coleção de livros da cidade. As joias da música sacra, em discos. E até uma coleção de Machado de Assis, da qual li, Helena, instigação de Vicente, o vigário desse meu bom tempo.
Fonseca Neto, historiador, da UFPI.