Proa & Prosa

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Bugarim da Canabrava

Do ponto de vista da organização cívica/política tem sua primeira distritalização sob a forma de Freguesia, autonomia paroquial

Fonseca Neto

Terça - 21/12/2021 às 06:52



Foto: Divulgação São João da Canabrava
São João da Canabrava

Picos é uma feira de tropeiros cidadizada na era oitocentista. Tem um povo bem radicado e ao mesmo tempo sua história é marcada por trânsitos e câmbios os mais diversos. 

Os tantos e multidirecionais caminhos que articulam a hoje cidade do vale-beira do rio Guaribas fazem de Picos um lugar meio íntimo das diásporas. Picos é um coração pulsante do sertão e a atividade comercial engendra seu dinamismo e lhe garante uma base razoável em se tratando de vida econômica e cultural. 

Do ponto de vista da organização cívica/política tem sua primeira distritalização sob a forma de Freguesia, autonomia paroquial – em torno da devoção mariana dos Remédios – decisão política do presidente José Antonio Saraiva, assinada no ano de 1851, dia 11 de setembro. Logo seguir, o lugar-matriz da Freguesia galga o passo definitivo da emancipação política: a criação do município, cuja lei é datada de 20 dezembro de 1855 – aliás, há exatos 176 anos, completados, hoje, dia em que escrevo esta nota. Desde essa época, Picos tem seu governo autônomo, que há quem, equivocamente, afirme que veio a tê-lo apenas após o golpe de 1889. 

Feita essa lembrança mais geral sobre sua formação social, quero destacar algo que me tem chamado atenção: a escrita e profusão de livros sobre Picos, vários tematizando famílias fundadoras da municipalidade secular, numa microrregião com mais de trinta municípios afeitos.

Conhecedor de outros inventários de memória repertoriando Picos, vejo agora o lançamento do livro coletivo sobre os Bezerra daquele rincão e relembro de outros mananciais de memória, a exemplo do que publicou o “Doutor Fonseca”, sobre o ramo picoense que lembra Dionísia da Fonseca...; o livro Dos Moura aos Moura Fé, escrito por Iracilde Moura Fé; o  livro de Teotônio Luz; do ramo local de Valério Coelho; outro do arredor familiar araripano. Há mais contributos. 

Tenho muito apreço pela memória/história que escreveu Renato Duarte, em Picos, Verdes Anos. Mas do livro dos Bezerra, agora saído, quero dizer do quanto é importante e exemplar como experiência de bem transformar a memória em historiografia. No caso, a memória de muitos, elaborada em texto alcançável e com chances de ser inapagável. 

O livro é intitulado A Flor de Bugarim, memórias dos descendentes de Ana e Bento Bezerra. As falas memoriais e o conjunto da obra enredam a vida de Ana Teodora de Sousa e Bento José Bezerra. Ela originária da povoação Riachão, e ele nascido na povoação Várzea Grande, ambas pertencentes ao município de Picos.  

Ana e Bento tiveram 15 filhos: João, Martiniana, José, Florêncio, Cândida, Maria, Francisca, Dionísia, Pedro, Luiza, Rosa, Antonia, Guilhermina, Eva, e Maria das Graças. E o livro tem por base e vem organizado a partir desses ramos, hoje crescidos por diversos lugares do Piauí e do Brasil. Cada capítulo comporta uma memória de Ana e Bento, segundo a elaboração da lembrança de cada um dos quinze, lavrada por netos e até bisnetos. 

Interessante: num feixe denso de informações familiares, e mais que isso, indicações de famílias consortes, a obra perfila a vida e percursos de muitos, o que revela o já feito e o que fazem da vida. 

As linhas memoriais das gerações Bezerra, iluminadas em A Flor de Bugarim, cruzam-se na Canabrava, hoje sede de município, lugar oficializado como São João da Canabrava – e ainda bem que foi conservado o topônimo popular-histórico e não fizeram a agressão tal com o Jenipapeiro e o Riachão.

A história da família Bezerra, do ramo canabravês, dos Picos e arredores, com seus ramos cruzados com tantas outras do lugar e alhures, não é outra mais que a história do Brasil. Ana e Bento, e tantas Anas, Bentos e Beneditos, são o Brasil bonito. Vivos, abominariam o Inominável da tortura e da dor que infama o país nesta quadra deplorável. 

A pátina do tempo revelada na bela fotografia da casa, à capa, o telhado tal o repositório dos beijos lunares, do ardor solar e da doçura das neblinas, repontam a poesia de uma paisagem humana constituída entre a ruralidade e o moderno insinuante. Sertanias gloriosas.

Quanta reverência a esse ninho avoengo de Guilhermina e Jane, a quem dedico estas linhas esperançosas.     

Fonseca Neto, historiador, Cadeira 1, Academia Piauiense de Letras

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Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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