Os projetos de emenda constitucional e de lei ordinária relativos à Reforma da Previdência estão sendo enviados nesses dias para o Congresso Nacional. Teremos um texto concreto para debater, para além dos vazamentos e das declarações do governo e dos fakenews ou realnews.
Mas Previdência é tão importante na vida das sociedades modernas que requer um debate mais amplo e fundamentado, até como referência para o debate dos projetos de lei. Sobre Previdência já existe um grande acúmulo de estudos e propostas, nascidas na Academia e das experiências administrativas.
O ponto de partida é a convicção de que os direitos trabalhistas e previdenciários são o núcleo dos direitos sociais. Convicções estão baseadas em valores, mas também na análise e reflexão sobre a experiência histórica. De te fabula narratur (A fábula está falando de ti): a experiência da Inglaterra desde o início da revolução industrial, no século XVIII, registra como se constituíram historicamente os direitos trabalhistas e previdenciários, depois tomados como modelos pelos países da Europa e de todos os continentes. T. H. Marshall, em seu livro Cidadania, Classe Social e Status (publicado pela Zahar Editores em 1967 e parece que nunca reeditado) descreve o processo, nascido da luta sindical e garantido depois por toda uma legislação: jornada de oito horas de trabalho - repouso semanal remunerado - salário mínimo – férias –aposentadoria – licença maternidade – auxílio doença – pensão - seguro desemprego.
Por isso a primeira luta é ideológica-cultural: aposentadoria/pensão e benefícios previdenciários são direitos. Está na hora de acabar com o retrocesso que foi colocar a Previdência no Ministério da Fazenda (agora Ministério da Economia), como se previdência fosse apenas uma questão fiscal e não um direito social a ser garantido pelo Estado, isto é, também pelos impostos que a sociedade paga, aos quais se somam as contribuições complementares dos futuros beneficiários. Não precisa ter um Ministério da Previdência, nem mesmo do Trabalho; o importante é ter um Ministério voltado para a Seguridade Social que pode ser o atual MDS. Na hora de votar a Medida Provisória (870/19) que reestruturou a Administração Federal, bem que se poderia corrigir esse erro!
A segunda consequência da visão da Previdência como direito social é o combate à ideia absurda de fazer a aposentadoria depender exclusivamente de capitalização. Capitalização é sempre “previdência completar”, com ou sem contribuição patronal conjunta. Os fundos de pensão na maioria dos países são isso. A PREVI do Banco do Brasil é um belo exemplo de funcionamento dos fundos de pensão bem administrados. Deve haver um “provento básico” ou uma “renda mínima”, que o rendimento da capitalização individual vai complementar.
O terceiro ponto básico, decorrência do segundo, é que um bom parâmetro para a piso da previdência (aposentadoria ou pensão) deve ser o salário mínimo.
Nos últimos anos, em todo o mundo, surgiu uma nova questão para a garantia dos direito previdenciário da aposentadoria: o aumento da esperança de vida ao nascer e a consequente mudança da estrutura etária das sociedades. A redução da taxa de crescimento demográfico, bem mais antiga, já tinha suscitado o problema. Não há como fugir à questão. É importante chegarmos a um consenso razoável em torno de uma idade mínima de aposentadoria independentemente do tempo de contribuição. 65 e 62 anos? E, como boa parte das mulheres ainda tem uma dupla jornada de afazeres domésticos, ainda faz sentido estabelecer uma idade diferenciada. A diferenciação não tem a ver com gravidez e parto; para esse fato a resposta é a licença-maternidade, que poderia aumentar para um ano.
No grande debate sobre a Previdência no Brasil precisamos retomar a questão do seu financiamento. O regime de repartição, baseado na contribuição do trabalhador e do empregador, enfrenta uma séria crise. O avanço tecnológico, a automação e o aumento da produtividade têm como consequência a diminuição do número de contribuinte nas empresas mais modernas, que empregam relativamente menos. E termina se criando uma situação desfavorável às pequenas e médias empresas, justamente as maiores empregadoras. É hora, pois, de rediscutir a definição da contribuição patronal privada pelo faturamento e não com base na folha salarial.
Existe o problema da inadimplência no Regime Geral da Previdência. Mas, a mudança da estrutura etária tem impacto também no setor público. No setor público não há inadimplência e o “déficit”, ou a parte das aposentadorias a serem pagas com recursos do orçamento fiscal, pode se tornar grande. A União enfrenta o problema; os Estados, inclusive o nosso Piauí, também; e a previdência dos Municípios é uma bomba relógio.
Por fim, uma questão geral que a história da previdência brasileira acumulou: o Regime Geral para o setor privado e o Regime Especial para o setor público, com seus sub-regimes para militares e parlamentares, por exemplo. Temos que caminhar para um Regime Único, que tem seu piso e seu teto garantidos pelo Estado, combinando contribuição e recursos do orçamento fiscal. Um direito que não é acessível a todos, terminando ganhando a o caráter de privilégio.
E aqui chagamos a mais uma questão: não se faz reforma da previdência sem regras de transição. Mas sobre isso, vamos debater depois.
(*) Antonio José Medeiros e sociólogo e professor aposentado da UFPI
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