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O Silenciamento das Mulheres que Fazem Cinema no Mundo


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Por Norma Soely Guimarães - jornalista

Quando se fala em mulher de cinema, precisa-se falar como ela foi afastada e invisibilizada no cinema mundial. Você pode se perguntar, mas as mulheres estiveram à frente do cinema? Quando? Sim, e como foram afastadas e invisibilizadas, não tinha como saber, a não ser a partir de uma pesquisa mais profunda, que foi organizada por Karla Holanda no livro Mulheres de Cinema. E quem é Karla Holanda?

 Falando em mulher cineasta, quem é Karla Holanda? 

Karla Holanda é uma piauiense de Parnaíba, que foi fonoaudióloga aos 26 anos de idade e, após 3 anos, abandonou a profissão para abraçar o cinema. Karla, que morava em Fortaleza/CE sonhando ser escritora, foi morar no Rio. Lá, iniciou sua carreira após fazer um curso de cinema. É mestra em Multimeios pela Unicamp e doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. De seu primeiro filme, Nas Veias e na Alma, até o filme Kátia, documentário que retrata a vida da primeira transexual a se eleger a um cargo político no Brasil, Karla fez muitos documentários e se aprofundou nas pesquisas da área. O filme Kátia, mostra a vida da vereadora, que se elegeu 3 vezes em colônia do Piauí. O longa rendeu prêmios como: 6º Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual de Fortaleza, seleção na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Projeto vencedor do Edital da Petrobras Cultural/2010, na categoria Longa/Digital, prêmios Diferença e Aquisição (TV Brasil), VI For Rainbow e o prêmio de melhor longa por voto popular na 8ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos da América do Sul. A organizadora é autora também de Feminino e Plural: Mulheres no cinema brasileiro, livro indicado ao Prêmio Jabuti em 2018 e que gerou a obra ampliada para o mundo: Mulheres de Cinema1 .

 O cinema já foi considerado uma profissão feminina 

Até a década de 1920 as mulheres eram protagonistas na área do cinema, em vários países. Era um momento de criação e experimentação do cinema, cujos temas eram voltados para questões sociais, polêmicos, críticos e que envolviam as relações de gênero. O cinema ainda não era regulamentado e as experimentações femininas envolviam, além da criatividade, do exercício de multifunções, a colaboração entre elas. Karla fala que sua pesquisa “trata da representatividade e representação da mulher no cinema”2 .

 A “naturalização” da divisão sexual do trabalho reproduz o preconceito e a discriminação, aceita o silenciamento e a invisibilização das mulheres na área pública, principalmente no mercado de trabalho. Na divisão sexual do trabalho, existem profissões consideradas masculinas, as de produção, que geram renda e as consideradas femininas, as de reprodução da vida ou do cuidado, que não são valorizadas e geram pouca ou nenhuma renda, pelo menos quando exercidas pelas mulheres. Por exemplo costura, cozinha, educação, quando chegam no patamar de  excelência, tem sua remuneração alta e passam a ser exercidas por homens. A psicanalista Regina Navarro Lins, em seu livro A Cama na Varanda fala que o patriarcado, “baseando-se em dois pilares básicos – controle da fecundidade da mulher e divisão sexual das tarefas -, a sujeição física e mental da mulher foi o único meio de restringir sua sexualidade e mantê-la limitada a tarefas específicas”3 . 

O cinema já foi considerado feminino quando, em sua origem e muito tempo antes de ser regulamentado, foi exercido pelas mulheres, que dirigiam, roteirizavam, faziam edição, montagem, distribuição e ainda atuavam. Instigada pela ausência da representatividade da mulher no cinema, a cineasta piauiense Karla Holanda, começou a pesquisar sobre as mulheres que foram protagonistas, não só como atrizes, mas como criadoras e diretoras. Buscou pesquisador@s4 do tema e organizou, com Marina Tedesco, as mulheres no cinema brasileiro (Feminino e Plural: Mulheres no cinema brasileiro) e depois, com 21 autor@s organizou a obra ampliada, com cineastas do mundo: Mulheres de Cinema. 

Há que se fazer o recorte da participação feminina, não necessariamente feminista, no cinema e em todas as profissões. O movimento feminista, assim como o Me Too, contribui para provocar esse debate e uma mudança de comportamento em relação à mulher.

 A história silenciada das mulheres, por trás de toda a história

 (3255) Les Résultats du féminisme (1906-1908) The Consequences of Feminism (Gaumont) - YouTube filme de Alice Guy Blanché

Antes de ser regulamentado e industrializado, o cinema era feminino, porém, depois da industrialização as mulheres foram silenciadas e afastadas do cinema. Hoje é uma profissão considerada masculina. Karla enfatiza que: 

Pode parecer irreal que, passados mais de 120 anos da exibição de A chegada de um trem à estação (1895) - o filme dos irmãos Lumière, que marca o surgimento do cinema -, essa história não tenha sido devidamente contada. Ouvimos muito sobre esses e outros pioneiros de todos os períodos da história, mas quase nada sobre as mulheres que participaram dessa história e que dela ficaram de fora, ao menos da versão oficial. 

Alice Guy Blanché (francesa) – realizou centenas de filmes desde 1896 

Quando se fala em recorte de gênero, esse estudo é colocado em uma escala de menor valor histórico. Quando se fala em participação da mulher em qualquer área há um reducionismo na importância. O oficial é o que vale e tudo o que se refere à mulher é colocado num lugar menor. Karla percebe e não se cala diante dessa realidade “como professora de cinema eu sempre percebia a ausência de bibliografias que pudessem contar a história do cinema mundial nessa perspectiva feminina”. Reforça que encontravam textos dispersos, em outras línguas, mas não tinha algo sistematizado. 

Rompendo o Silêncio das Mulheres 

O livro Mulheres de Cinema traz 22 artigos de mulheres e homens que pesquisaram a mulher no cinema mundial. Foram pesquisadas mulheres de vários países, chinesas, alemãs, estadunidenses, mexicanas, africanas, ameríndias, portuguesas, iranianas, indianas, latinas e brasileiras. 

Karla fez a pesquisa sobre as mulheres do cinema brasileiro dividindo em 3 momentos no artigo O Outro Lado da Lua no Cinema Brasileiro: 

1º. Momento - revela desde os “primórdios” até o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Entre as poucas informações e registros desse período, Karla encontra pesquisas de Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira. Elas investigam e mostram que a mulher era vista e retratada no cinema brasileiro da forma que o machismo se manifestava na sociedade da época, colocando a mulher num patamar de servir aos homens. A mulher era objeto de cama mesa e banho, um ornamento de beleza e as que não tinham o estereótipo da mulher bela, jovem, branca e magra (a mocinha) era colocada como má, feia, solteira, louca (a vilã). 

O estereótipo da mulher bonita, loira e “burra”, ou “bonita, recatada e do lar”, que precisa de um homem para conduzir sua vida e protegê-la, ainda hoje é produzido em muitos filmes, mesmo com o avanço do movimento feminista e com o avanço e o reconhecimento de mulheres cineastas. É muito tênue a linha que separa a retroalimentação da realidade e o reforço de preconceitos no cinema, por isso é importante que o olhar feminista esteja atrás das câmeras, para mudar essa realidade. 

As pesquisadoras mapearam até 1980, 15 cineastas e 21 filmes feitos e dirigidos por mulheres. “O primeiro deles é O mistério do dominó preto, de Cléo de Verberena, lançado em 1931” (Holanda. 2019. p. 138). A mídia da época, em suas publicidades e matérias, colocava em xeque e de forma irônica uma obra dirigida por uma mulher. Esse comportamento da mídia é previsível para a época, dentro do sistema machista. Lins afirma que, “como sempre foram consideradas incompetentes e desinteressantes, é possível encontrar nos dias de hoje mulheres relegadas ao espaço privado ou impedidas de crescer profissionalmente” (LINS. 1997. p. 40). 

O Ano da Mulher, 1975 e a Década da Mulher, promovidos pela ONU, marcou o movimento feminista no Brasil e refletiu nas mulheres que faziam cinema. Em consequência foi criado o Coletivo de mulheres de Cinema e Vídeo no Rio de Janeiro em 1986. 

2º. Momento – período de retomada após o “apagão” do governo Collor. Foi um momento difícil em que o cinema brasileiro deu uma parada brusca marcada pelo fechamento da Embrafilmes. A produção foi retomada, em 1995 com o lançamento de Carlota Joaquina, de Carla Camurati. Nesse período muitas cineastas com ideias e propostas novas tiveram visibilidade no cenário brasileiro como: Tata Amaral, Tizuka Yamasaki, Lúcia Murat e outras. 

3º. Momento – “políticas identitárias”. Aqui Karla destaca um aumento, mesmo discreto, na representatividade das pessoas excluídas dos meios de produção cinematográfico: mulheres (pobres e negras), pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+. Segundo pesquisa realizada pela ANCINE, em 2016, dos 142 longas lançados, 19,7% foram dirigidos por mulheres, apenas 2,1% por homens negros e zero% por mulheres negras. Karla sintetiza o terceiro período:

O que vemos hoje com muita força, sobretudo a partir da década de 2010, são cineastas de variadas cores, com consciência de classe ou de privilégios (...) e eles reafirmam (ou não) suas tradições afro e indígena e apontam a origem dos problemas do país segundo seu diagnóstico: racismo, preconceito de classe e sexualidade...” 

Para nós mulheres, viver, falar, transgredir são atos políticos e, assim como no cinema, em todas as áreas, a realidade só muda se nos movimentarmos. E esse movimento precisa ser registrado, escrito transformado em filme, distribuído e perpetuado por nós, para que as próximas gerações possam se sentir representadas e provocar uma mudança radical (lembrando que o termo significa voltar para as raízes): a extinção do machismo.

1 HOLANDA, Karla. Mulheres de Cinema. Org. Rio de janeiro. Editora Numa, 1ª edição: 2019. 

2 Idem, entrevista ao programa de TV Sob Outro Olhar, publicado no Youtube. (3227) KARLA HOLANDA E TIZUKA YAMASAKI - YouTube (pesquisa em 14/12/2022, 14:29h).

 3 LINS, Regina Navarro. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo: novas tendências. Rio de Janeiro. Editora Bestseller, 2007.

 4 O @ é utilizado pelo movimento feminista para caracterizar feminino, masculino e outros.

Fonte: Por Norma Soely Guimarães - jornalista

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