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Sanfoneiro de Regeneração é destaque em Brasília

Piauí Hoje

Segunda - 07/09/2009 às 03:09



Esta é a história de um homem que fez da música o caminho para continuar vivo. E se agarrou a essa música como salvação. Lá pelas tantas, ele diz, comovido, com os olhos miudinhos ainda mais fechados, como se confessasse seu maior segredo: "Ela me aproxima de tudo que é puro e belo. É divina. Me faz ficar mais perto de Deus". E, no meio daquele bambuzal, onde só o silêncio se faz presente, o homem começa a tocar. Faz o que tão magnificamente sabe.Pega a sanfona e dela sai My Way, canção de Paul Anka, que fez sucesso estrondoso com Frank Sinatra. Depois, emenda com New York, New York. Em seguida, brinca com Smile, a famosa canção de Charles Chaplin, e saracoteia com La vie en rose, que imortalizou a dama da música francesa, Edit Piaf. Não contente, arrasa com A Noite do Meu Bem, da impagável Dolores Duran. É inacreditável. Arrepia.E faz um final apoteótico: ressuscita o maranhense João do Vale com a sua gostosíssima Pisa na Fulô. É aquele baiãozinho que diz assim: "Um dia desses fui dançar lá em Pedreiras, na rua da Golada e gostei da brincadeira, Zé Caxangá era o tocador, mas só tocava pisa na fulô. Pisa na fulô, pisa na fulô, pisa na fulô não maltrate meu amor ... Seu Serafim cochichava com Dió, sou capaz de jurar que nunca vi forró mió, inté vovó garrou na mão do vovô e disse umbora meu veinho pisa na fulô..."A entrevista podia parar por ali. Não havia mais o que perguntar, o que ele pudesse dizer. Repórter e fotógrafo estavam completamente embasbacados. Só restava aplaudir. E pedir mais, enquanto houvesse emoção. Enquanto aquela sanfona estivesse ali, ao alcance dos olhos, dos ouvidos e da mais pura e legítima magia. Sua música dá a exata dimensão de quem é esse homem tão miudinho, albino, (1)que enxerga muito mal, mas que tem uma inacreditável vontade de reiventar a vida. Todos os dias.Era preciso seguir com a entrevista. E ele se apresenta, do jeitinho dele, quase tímido, quase fugindo dali. Ei-lo: Gonçalo Aquino Cardoso, piauiense de um lugar onde o vento fez a curva: "Sou de Regeneração", ele diz. E continua: "Morei lá até os 7 anos. Meu pai era lavrador e tive sete irmãos (nota: entre eles, quatro albinos). A gente tudo trabalhava na roça". Pergunto se ele era o filho mais velho. "Não, menino, sou encostado do caçula", responde, assim simplesinho como ele é em essência.Aos 7 anos, por causa da seca desesperadora, Gonçalo mudou-se com a família para o Maranhão. O pai foi atrás de outras terras. Pararam num lugar onde o vento, que já tinha feito a curva, curvou-se ainda mais. Em Lago da Pedra, a vida seguia. De dia, era trabalho braçal. À noite, Manoel, o pai lavrador, com mãos calejadas, tocava sanfona de botão. Ainda moleque de calça curta, a música lhe invadiu a alma. Adolescente, com ajuda de Alcides, o irmão mais velho, que já tocava sanfona, conheceu o banjo. E aos poucos foi aprendendo também os segredos da sanfona.Destino marcadoO menino de cabelos amarelos e pele rosada cresceu trabalhando na roça e se escondendo do sol como o diabo foge da cruz. "Eu usava um chapéu bem grande, mas era muito difícil me proteger da claridade. Já não enxergava bem." Alcides arrumava festas para tocar nas redondezas e chamava o irmão "encostado do caçula" para acompanhá-lo. "Ele tocava sanfona; e eu, banjo. Tocava a noite toda e não me cansava. Se tinha alguém pra dançar, eu ainda arrastava pé", conta, às gargalhadas.Assim, para deixar a lavoura (a pele não aguentava a exposição ao sol inclemente do Maranhão), aprendeu a tocar sozinho mais um instrumento: chegou ao teclado eletrônico. À noite, ganhava uns trocados animando festas do interior. Casou-se em 1970, aos 22 anos, com sua Maria, a sempre companheira de 40 anos. Em 1974, veio a Brasília, para deixar uma cunhada. O irmão tinha vindo na frente. Hospedou-se no Gama, na casa do primo João Baiano, tocador da noite. "Ele me ajudou muito. Me ensinou teclado e piano. Devo muito a ele. Sem o João não teria voltado pra cá", agradece.Do que seria uma viagem de alguns dias, virou meses naquele marcante 1974 da capital sitiada pelo regime militar. Gonçalo começou a tocar com João Baiano em bares e restaurantes. Ora do Gama ora do Setor Comercial Sul - o endereço das nobres casas da época do Plano Piloto. "Comecei a sentir que podia viver da minha música. Era isso que sabia fazer", lembra. Naquele mesmo ano, passou a ser chamado por todos que o ouviam de Sivuquinha, pela óbvia semelhança física com o mestre Sivuca.No fim do ano, voltou pra casa. Precisava ficar junto de sua Maria e dos dois filhos já nascidos. "Demorei apenas seis meses. O João Baiano foi ao Maranhão e disse que tinha emprego pra mim em Brasília. Não contei história." Em setembro de 1976, desembarcou novamente em Brasília. "No dia 7, no feriado da Independência, tava empregado na boate Camponesa, no Gama." Em 1977, trouxe a família para a terra que o adotaria para sempre. Exceto os parentes, ninguém nunca mais o chamou de Gonçalo. Virou eternamente Sivuquinha.Aqui, nasceram os outros dois filhos. Aprendeu, na cara e na coragem, os segredos do piano (os dedinhos miúdos enlouquecem ao reproduzir clássicos de Elton John e dos Beatles). E tocou como nunca em quase todos os bons restaurantes, churrascarias, bares e boates de Brasília e arredores. "Era tudo muito chique naquela época", lembra. Em 1980, numa apresentação do mestre no Teatro da Escola Parque, Sivuquinha conheceu, enfim, Sivuca. "Ele me chamou pra tocar no palco com ele. Foi a maior honra da minha vida", comove-se.Ilustre cidadãoE o tempo passou. Em 1982, comprou, com o dinheiro honesto e suado de sua música, a casinha onde mora com a família, no Setor P Sul. Tirou o registo na Ordem dos Músicos do Brasil. Em 2002, gravou o CD Canções pela paz, com o maestro Manoel de Carvalho e Paulinho do Trombone. Há uma década, sai de Ceilândia de ônibus e chega à 602 Sul. Vira aluno da Escola de Música de Brasília. "Sempre fui autodidata. Precisava de conhecimento teórico", explica. Há dois anos, dedica-se ao aprendizado de um novo instrumento, a clarineta. Modesto, tocando a bela Fascinação e depois a imortal Eu sei que vou te amar, disfarça: "Tiro uma melodiazinha. Tô aprendendo...." Mentirinha. Também é um craque no instrumento de sopro.Em 11 de setembro, próxima sexta-feira, o mágico da música completará 61 anos. Nesse dia, receberá uma homenagem merecidíssima: uma moção honrosa da Câmara Legislativa. A cerimônia será no restaurante Assados e Grelhados, na 109 Sul, a partir das 19h. A sanfona vai gemer. E a emoção, marejar os olhos. "Será que mereço tanto?", pergunta. Alguém duvida?Desde 1976, quando partiu de sua distante Lago da Pedra rumo ao sonho de ser músico na capital do país, Sivuquinha nunca mais voltou ao Maranhão. Mas pretende fazer o mesmo que teve a chance de realizar, no ano passado, no Piauí, onde pisou pela última vez há 32 anos. Fez vários shows pela capital e interior. Arrebatou multidão. Em toda a viagem, por 15 dias, apresentou-se em companhia do grande amigo Aloísio César, 58, estudante de canto e violão da Escola de Música de Brasília. Na Rádio Pioneira - a primeira que lhe deu uma chance na vida, aos 20 anos - bateu recorde de audiência de um programa. "Deus foi muito bom comigo", diz, ajeitando o cabelo e perguntado se está "arrumadinho pra foto".Mas de tudo que viveu no Piauí, uma surpresa foi pra lá de inesquecível. Reencontrou Zé da Muriçoca, o sanfoneiro com quem tocou no Maranhão na juventude. Sivuquinha chorou como só menino sabe chorar. Não conhecer esse homem que faz brotar sonhos de sua sanfona encantada é crime de lesa-pátria. Sivuquinha é música transformada em gente.1 - DistúrbioO albinismo é um distúrbio hereditário raro no qual não ocorre produção de melanina. Os albinos possuem cabelos brancos e pele rosa. Frequentemente, têm visão subnormal e nistagmo (movimentos involuntários dos olhos). Como a melanina protege a pele contra a ação do sol, eles apresentam uma tendência a sofrer queimaduras solares e, em consequência disso, câncer de pele.

Fonte: Correioweb

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