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Filme piauiense realizado em parceria com a Globo lota sessão de cinema em Teresina

A Irmandade conta a história de três jovens que através do rap lutam para mudar a realidade da comunidade onde vivem

Valciãn Calixto

Quinta - 31/10/2019 às 17:34



Foto: Divulgação A Irmandade, filme piauiense
A Irmandade, filme piauiense

RESENHA

A Irmandade é um documentário piauiense que retrata a vida, ou por outro ângulo, as muitas mortes (homicídios) em duas comunidades da zona Sul de Teresina, marcadas e divididas por um cotidiano de repressão policial, rivalidade entre gangues e falta de assistencialismo público. De acordo com o doc., de 2003 a 2014 os casos de assassinatos cresceram 94%. De 2013 a 2015, a maioria das reportagens policiais tinha como cenário a região sul da capital piauiense.

A pré-estreia da película aconteceu na noite da última quarta-feira (30), durante sessão lotada na II Mostra de Cinema Piauiense do Teresina Shopping, com direito a bate-papo com os realizadores da obra e os principais atores, demonstrando o sucesso e a força das narrativas a um público que parece ter contato com essa realidade somente através de uma tela de cinema, a quem precisa ir a um cinema para descobrir a cidade por cima dos muros da zona Leste, o outro lado, diferente do que aparece nas campanhas em alusão ao Dia do Piauí e ao aniversário de Teresina.

Uma das maiores salas de cinema do Teresina Shopping lotada durante a pré-estreia

O cotidiano violento nas Vilas São José e Santa Cruz, na região do bairro Promorar, parece ser o principal personagem do documentário. Um personagem que engole jovens, famílias, sonhos e possibilidades, similar ao O Cortiço, livro de Aluísio Azevedo, obra na qual todas as histórias e denúncias contadas levam em conta o ambiente em que os moradores residem, atrelando a condição de vida de cada um a realidade do local, como se aquele espaço interferisse diretamente em seus destinos, o que é uma característica da corrente literária conhecida por Naturalismo, que trazia em seu bojo, dentre outras, influências de teorias filosóficas como Determinismo.

No vídeo, o determinismo se materializa por vezes na fala do rapper Lu de Santa Cruz, nome artístico em referência a ‘quebrada’ de onde veio, que em diversas passagens afirma que as crianças da localidade só possuem como referência o crime, as drogas e que outro futuro além desse é difícil. O artista revela que ele mesmo encontrou dificuldades para fugir desse destino pré-determinado e que o rap foi a grande virada em sua vida.

O cotidiano marcado por sangue na região é rompido ludicamente quando jovens das duas comunidades, os irmãos Preto Kedé e Aliado mais Lu de Santa Cruz, decidem se juntar e formar o grupo de rap chamado A Irmandade, buscando integrar as duas vilas, além de denunciar o descaso do Estado para com a periferia e a conduta policial diferenciada nestes espaços através de seus sons.


A conduta diferenciada fica evidente em diversos momentos do filme, seja quando o rapper Preto Kedé, um dos fundadores do grupo, é detido pela polícia numa abordagem truculenta, sendo imobilizado, algemado, derrubado no chão, tendo uma arma apontada no rosto, em seguida atirado na viatura e recebendo tapas do policial, que alegou desacato de autoridade para o ato; seja quando o professor Marcondes Brito traz sua análise de que "a Polícia cidadã está agindo na zona leste, enquanto a Polícia fascista está agindo em outras zonas".

Para quebrar essa rotina, os MCs passam a gravar clipes nas ruas das duas comunidades, a realizar eventos com exibição de filmes para os moradores, batalha de hip hop e breaking para jovens e crianças, ocupando assim não mais as páginas policiais da imprensa, mas sim as editorias de Cidade e Cultura, em uma simbólica elevação da autoestima de toda aquela região.

Película piauiense ficou em cartaz ao lado de filmes como Bacurau e Coringa nos Cinemas Teresina

Contudo, os desafios permanecem. Entremeando os depoimentos dos rappers, relatos de moradores não identificam o surgimento dos conflitos nas duas vilas, mas contextualizam. É o caso de Dadá, jovem que hoje anda com ajuda de muletas desde que foi baleado por rivais e teve um irmão morto, vítima da rixa entre as duas comunidades.

O documentário deixa claro o quanto o acirramento entre as gangues vizinhas era grande o suficiente para que os jovens da Vila Santa Cruz não pudessem andar pela Vila São José e vice-versa, correndo risco de morte quem tentasse, o que também pode ser observado pelas palavras de Brito. “Gang para o jovem de uma comunidade é fator de proteção, para outra comunidade tem que ser destruída”, explica.


A narrativa apresenta ainda um fenômeno recente no Brasil, o de militares que se elegeram às custas de um discurso direcionado à Segurança Pública e promessas de diminuição da violência nas ruas. O fenômeno é ilustrado com as falas do deputado federal Fábio Abreu, capitão do Rone, eleito em 2014 e convocado para a Secretaria estadual de Segurança a partir de 2015, tendo sido reeleito em 2018 e novamente convocado para assumir a pasta em 2019.

No vídeo, o deputado reconhece que faltam recursos para a área. “Nós precisamos sim, de investimento maior para a segurança pública”, fala. E é esse o deputado que, após quase cinco anos à frente da Secretaria de Segurança do Estado é um dos nomes colocados como pré-candidato para disputar a prefeitura de Teresina em 2020.

 Ou seja, com a força de um mandato federal, emendas à sua disposição e toda a estrutura de uma das principais pastas do Governo, a Secretaria estadual de Segurança Pública, o antigo capitão do Rone não resolveu a questão da violência urbana, corroborando a tese de que ter militares no poder não significa a redução da marginalidade, da violência, do tráfico, da lotação em presídios. O exemplo, mais claro disso, depois do deputado Fábio Abreu, é o próprio presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que tem enfrentado as mesmas dificuldades que prometeu sanar durante as promessas de campanha.

Juscelino Ribeiro e Alexandre Mello

A Irmandade é uma obra dirigida por Juscelino Ribeiro (Framme Produções), tem produção de Alexandre Mello, co-produção com a Globo Filmes e Globo News. Necessária para que as comunidades Brasil adentro, que vivem a mesma realidade, possam se enxergar e perceber que, apesar das diversas faltas: de saneamento, segurança, saúde, lazer, cultura, toda vila, todo bairro é repleto de talentos dispostos a mudar esse cenário, tal qual os três rappers citados, que usam de sua arte para contribuir com a sociedade e também para denunciar descasos e desmandos dos poderes que deveriam prestar assistência.


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