Arte e Cultura

CONSCIÊNCIA NEGRA

Cinema negro: mulheres do Piauí e Maranhão reescrevem histórias em núcleo criativo

Fincadas nas raízes ancestrais de mulheres negras da diáspora transatlântica, série “Entidade” tece ficção baseada em histórias reais

Da Redação

Quinta - 20/11/2025 às 11:10



Foto: Divulgação Projeto “Entidade” é uma realização do Cineclube Negro Tela Preta
Projeto “Entidade” é uma realização do Cineclube Negro Tela Preta

No Brasil, mais de 80% dos filmes de cineastas negros vieram apenas depois de 2010. É o que revela o levantamento do estudo “Cinemateca Negra”, de 2023. O mapeamento, que analisou mais de mil filmes nacionais dirigidos por pessoas negras, aponta que a grande maioria dos filmes (84%) são curtas-metragem, revelando a dificuldade encontrada por cineatras negros e negras para acessar postos de maior prestígio, como a direção de um longa-metragem

É bem verdade que realizadores audiovisuais negros e negras estão produzindo há décadas, mesmo com baixíssimos ou nenhum recurso, muitas vezes sem conseguir chegar com suas produções nas salas de cinema comerciais, ou mesmo enfrentando a resistência da indústria cinematográfica em reconhecer que o que estava sendo feito era cinema, e por isso, sem entrar nas estatísticas. Muitos nomes receberam a invisibilidade, e outros tantos tiveram suas obras caídas no esquecimento ou apagamento, no caso de muitas obras que vieram antes da era digital e não conseguiram preservar suas películas.  

Para as mulheres negras, a situação é ainda mais desafiadora. Um estudo realizado pela Ancine revelou que, entre 2016 e 2019, apenas 2% dos roteiros de filmes comerciais lançados no Brasil tiveram autoria de mulheres negras. 

É na contramão desse cenário que mulheres negras do Piauí e do Maranhão estão se envolvendo na escrita de  uma série de ficção, inspiradas na vida e na trajetória de mulheres pretas em diáspora no Brasil, como Esperança Garcia, Kehinde, Maria Jesuína, Beatriz Nascimento, Francisca Trindade e Sueli Rodrigues

Reunidas no Núcleo Criativo desde setembro de 2024, cerca de 10 mulheres experienciaram a criação audiovisual com foco na mulher negra e sua ancestralidade. É dessa encruzilhada criativa que surge o roteiro de “Entidade”, uma série ficcional autoral de sete episódios. 

“Foi muito emocionante. A gente estudou, a princípio essas mulheres, a trajetória de vida delas, e como, de uma forma ou de outra, essas histórias têm pontos parecidos. A gente tentou, além de estudar essas mulheres, também entender um pouco da vida delas, para fazer essas conexões entre uma personagem e outra. Porque não são meramente ficcionais, foram mulheres que realmente existiram, que são nossas referências”, explicou Milena dos Anjos, a DJ Milis, integrante do núcleo criativo. 

A oralidade, a literatura, os registros escritos e as narrativas audiovisuais foram utilizadas como elementos na pesquisa do núcleo. Carmen Kemoly, do Cineclube Tela Preta Piauí, realizadora da iniciativa, conta como fluiu a dinâmica do núcleo criativo. 

"O Núcleo Criativo funcionou da seguinte forma: Primeiro um grupo de quatro pesquisadores realizaram uma pesquisa inicial sobre as personagens. Essa pesquisa prévia era levada ao Núcleo Criativo, e aprofundada a partir de Consultorias Especializadas de cada uma das  personagens.  O fim desse processo resultou na produção de escaletas, um esboço estruturado da história total, organizando as cenas e eventos principais, antes da escrita detalhada do roteiro para os sete episódios da série". 

A partir de suas vivências, envolvidas de forma colaborativa e introjetando afrovisualidades para cada personagem, as integrantes do núcleo criativo deixaram suas impressões na escrita coletiva do roteiro.

Carol Henrique, produtora do projeto e membra do núcleo criativo comentou sobre a importância da escrita para o audiovisual como elemento de memória. 

“Fazer parte do núcleo enquanto equipe foi muito enriquecedor porque traz a história de várias mulheres. Construir esse roteiro, fazer o começo da costura dele, falar sobre nossas histórias também, que são as histórias dessas mulheres, é muito importante, para não cair no esquecimento. Se a gente não falar das nossas histórias, elas vão ser esquecidas. A gente não pode deixar que isso pare por aqui”, afirmou. 

Núcleo criativo: escrevendo o roteiro de forma coletiva

A metodologia do núcleo criativo foi a escolhida para a escrita do roteiro da série Entidade. Nela, um grupo de criadores - neste caso criadoras - trabalharam colaborativamente no desenvolvimento do roteiro. 

A abordagem colaborativa impulsiona ideias inovadoras e fortalece a diversidade de narrativas na construção da trama. Foi o que ocorreu com o filme "Ainda Estou Aqui", drama biográfico brasileiro dirigido por Walter Salles e lançado em 2024, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional. 

Inicialmente, o roteiro do filme foi levado a um núcleo criativo, espaço em que outros roteiristas compartilhavam e discutiam seus projetos. Foi nesse núcleo em que o roteiro foi tomando novas formas até sua versão final. Essa experiência revela a importância da boa construção de um roteiro e de como investir nessa etapa do processo audiovisual traz relevância para o cinema brasileiro. 

No Núcleo Criativo do projeto Entidade, além de suas integrantes, foram convidadas consultoras, pessoas de referência para cada uma das personagens estudadas. As especialistas convidadas compartilhavam sobre a história e trajetória da personagem em questão e opinaram na proposta de escaleta. 

“O Piauí é um território com muitas iniciativas criativas de produção audiovisual, mesmo não existindo no Piauí nenhuma Escola de Formação de Cinema, por exemplo. O Núcleo Criativo surgiu para  impulsionar essas ideias,  e contribuir para que elas se tornem realidade. O roteiro que estamos desenvolvendo fala de cinco mulheres negras que construíram a história desse país, sendo escrito a partir de um núcleo com mais de dez mulheres na criação. ”, explicou Carmen Kemoly.

Mulheres reais inspiraram personagens

  • Esperança Garcia: Mulher negra escravizada no século XVIII, ficou conhecida por escrever uma carta ao governador do Piauí em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria. Sua petição é considerada um dos primeiros registros de reivindicação de direitos no Brasil, e ela foi reconhecida simbolicamente como a primeira advogada do país.
  • Sueli Rodrigues: Professora e pesquisadora piauiense, Sueli tem um papel fundamental na valorização da história e cultura afro-brasileira. Seu trabalho acadêmico contribui para a defesa dos direitos humanos e para o reconhecimento de figuras como Esperança Garcia.
  • Francisca Trindade: Parlamentar e ativista piauiense, foi uma das vozes mais importantes na defesa dos direitos dos povos vulnerabilizados, das mulheres negras e periféricas. Atuou na Câmara Municipal de Teresina, Assembleia Legislativa do Piauí e na Câmara dos Deputados e lutou por políticas públicas voltadas à inclusão social.
  • Kehinde: Kehinde, personagem do livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, inspirada na história de Luísa Mahin. Com oito anos, ao chegar de porto africano em solo pindorâmico, vive no período pré-abolicionista brasileiro, compra sua alforria, e guarda mistérios dos anos de fugas e revoltas. No Brasil pós-abolição, volta à África.
  • Maria Jesuína: Maria Jesuína a rainha Nã Agontimé (séculos XVIII – XIX). Maria Jesuína, originária do povo Mahi (yoruba-nagô), foi levada como escrava ao Daomé, onde se destacou por seus conhecimentos espirituais e se tornou esposa do rei Agonglo. É considerada a fundadora da Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, trazendo o culto dos voduns ao Brasil, onde atuou como sacerdotisa de Toi Zomadônu, um importante vodun do povo fon.

  • Beatriz Nascimento: Historiadora, poeta e ativista negra, Beatriz foi uma das principais intelectuais do movimento negro no Brasil. Seus estudos sobre quilombos e resistência afro-brasileira ajudaram a redefinir a narrativa sobre a diáspora africana e a luta por direitos civis.


Incentivo público

O projeto “Entidade” é uma realização do Cineclube Negro Tela Preta, fomentado com recursos da Lei Paulo Gustavo 2023, via edital Torquato Neto, com apoio da Plataforma de Comunicação Popular Ocorre Diário e do Memorial Casa Maria Sueli Rodrigues.



Fonte: Ascom

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