Proa & Prosa

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Na Praça da Maria Paé

Nas praças, enfim, a celebração da vida na pólis e a ritualização da morte na civitas.

Fonseca Neto

Quinta - 17/02/2022 às 20:30



Foto: Divulgação Praça de Maria
Praça de Maria

As ruas são os rios de gente que correm no corpo da cidade. As praças são o lugar de parada nos passeios e lazeres da vida urbana, lugar das artes expostas, das falas em comício, de ajuntar a energia do coletivo para celebrar os feitos cívicos vitoriosos.

Nas praças os citadinos se encontram para tecer os rumos da sociabilidade.  

E como a história não se move num sentido só, desde um tempo muito antigo, as praças também são o campo de muitas batalhas, dos duelos. Exposição exemplar dos derrotados, condenados, e do cadafalso e fogueira de seu fim, face a face com a “verdade” do poder.

Nas praças, enfim, a celebração da vida na pólis e a ritualização da morte na civitas.

Quando nasci, num burgo verdoso à beira de um caminho do sertão brasílico e sua  Passagem francamente molhada, ao abrir os olhos, dei com eles numa pracinha do lugar que todos chamavam de “da Maria Paé”. Paé, moradora destacada do entorno, viúva e piruliteira.

Pequena praça, na boca alargada da mais comprida rua da cidade, a Rua do Grajaú – o dito secular caminho já referido. Maria Paé, uma viúva incalável, tornara-se a guardiã da praça, feita pelo prefeito Faustino, que também morava logo por perto.

Aliás, o prefeito decretou que a praça se chamasse “Senador Vitorino Freire” – não pegou. E para todos, na realidade, na minha e na memória de muitos, a pracinha da Maria Paé. Boa concepção, triangular imperfeita, calçada alta e com três bancos de assentos alouçados e frisados, tais os da capital, São Luís.

Da arborização do Faustino – rala – nada sobreviveu. Na chegada dos anos de 1960, de árvore, apenas havia na praça, um imenso “pé de pinho” – que nenhum homem abarcava o tronco – remanescente do “outro século”, poupado durante a construção. E também um festejado “pé de pau brasil” que a dita Maria Paé plantara, regara e era um xodó seu. Moradora do lado do sol, debaixo dele fizera seu lugar de fazer bordados nas tardes quentes da Passagem. Também vivia às turras com cavaleiros e tropeiros querendo amarrar seus animais por ali.   

Numa das extremidades da praça, outras árvores, outro pinheiro fino, e um oitizeiro jovem – mimo de D. Zila do Zé Clarindo. Era assim: as poucas árvores públicas, tinham seus “donos”.   

Naquela década de 60 as coisas começaram a mudar na graciosa praça: mandaram quebrar um de seus lados para montar uma Bomba de Gasolina, a primeira da cidade. Para uns, sinal de “progresso”; para Maria Paé, a destruição de umas poucas coisas bonitas da Passagem, a pracinha do Faustino, e dela.

Maria protestou com muita veemência contra tal decisão que para ela, era - e era mesmo – uma cruel violência. Foi ao então prefeito, ao vigário, tentou mobilizar vizinhos... Nada! Todos diziam que a cidade precisava ter “progresso”. Mesmo Sebastião Reis, influente vereador, também morador do lado da sombra, ensaiou protestar quando enterraram, quase à sua porta, o imenso tanque para alimentar a Bomba. Conformou-se com o “progresso”.

O pior estava por vir. E viria poucos anos depois. A cidade com nova administração, feridas abertas das brigas de “ratos” e “labigós”, sai a determinação de se eliminar todas as árvores a cidade – suas folhas “sujam” as ruas, diziam os gestores e simpatizantes.

Montou-se uma bem apetrechada volante que saiu cortando as árvores, começando pelas mais amadas dos labigós perdedores da eleição. O secular pinheiro da pracinha foi derrubado, indefeso. O oitizeiro dos Clarindo foi abatido ao som de foguetes. Facilmente eliminaram a palmeira de Dona Dalziza Moreira, quase uma filha para ela. O velho pé de mindola de Dona Hortinha, golpeado a machado, caiu sepulto num velho barreiro.

Mas duas queridas árvores tiveram suas defesas heroicas: o Pau Brasil de Maria Paé e a Figueira, secular, de Dona Silva do Pedro Cândida. Quando chegou o grupo cortador da Prefeitura, Maria Paé postou-se debaixo dele, disse que ninguém encostaria. Mas já muito idosa, frágil, estatura pequena, não resistiu. E com muito choro, viu a ignorância matar em sua porta a árvore símbolo do Brasil.

Mas teve melhor sorte a dita figueira à rua do Cemitério, do velho Badu, à frente da casa da viúva de Pedro Cândido: à aproximação dos cortadores da Prefeitura, a viúva empunha sua espingarda, faz um disparo no quintal e foi para debaixo da figueira – salvou-a; e baixou um bom senso forçado.

O “progresso” da cidade engoliu a praça.

  

Fonseca Neto, historiador, Ufpi. 

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FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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