Grito de independência? Nem grito e nem independência. A separação entre si, dos reinos de Portugal e do Brasil, que enreda os acontecimentos históricos e historiografados de 1822, constitui um vexaminoso processo de encobrimento para sonegar dos contemporâneos e dos pósteros a verdade do ocorrido.
Por quê a sonegação? Porque – há muito sabido – o conhecimento da verdade liberta. Parece discurso religioso? É discurso consistente com a sustentação da verdade no sentido da História. E diversos e excelentes estudos atestam que o encaminhamento da separação dos referidos reinos selou um acordo diplomático para conservar laços e não o contrário.
Os fatos se dão – naqueles dias do imediato 1822 – sob o controle de um núcleo duro de poderosos, coesos, contra qualquer mudança que tendesse, por exemplo, abolir o sistema escravista e abrir o acesso à terra a não-possuidores. Que tendesse abolir a forma monárquica de governo, o elo, vivo, a enlaçar Portugal e o Brasil.
Não poucos são os estudos que apontam essas questões centrais que resultam no modo singular de se fazer uma separação sem se tornar independente de maneira real. Separa-se mas se mantem intactas a estrutura e dinâmica do escravismo secular, conservando-se a base de tudo, a terra de lavrar, nas mãos de meia dúzia. Conservando-se a própria monarquia luso-austríaca no comando político.
Aqueles eram dias e anos da reorganização da Europa continental e britânica, vencido Bonaparte pelas armas e tempestades. Eram dias em que, de Viena, tinha-se uma ajustada cartografia de tronos restaurados, e do outro lado do Atlântico novos organismos e sujeitos, Estados de nações em larva, gerados sob o violência da dominação colonial.
Ora, 1815-22, neste lado, a parte norte, já se definira independente da Metrópole e até já formulada uma “doutrina” afirmando ser os EUA o Império de todo o continente americano. O Haiti, insular, porém do lado de cá, também já rompera, com fogo de revolução, os grilhões da escravidão e a sua separação da França. A América espanhola, inteira, proclamava-se independente e abolia a escravidão.
E a América portuguesa? Esta vivia sua singularidade intrigante: a colônia se tornara sede metropolitana do Império português, logo elevada juridicamente à categoria de reino, isto é, Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, entrando diretamente nos arranjos vienenses da geopolítica reacionária do pós Bonaparte. O que fez o Congresso de Viena? Jogou na contra-independência: sem concessão a emergências revolucionárias.
O referido Congresso, restaurador de tronos derrubados pela voragem revolucionária daquelas décadas, inclui-se nesse papel uma saída diplomática para o Reino Unido de Portugal e Brasil, com um Oceano partindo-lhe ao meio. Que fazer? Conservar a unidade, que significava conservar a forma tradicional monárquica, preservando a dinastia reinante, dos Bragança, lá e cá. O mais era negociável. Mesmo a cláusula da unidade política.
Assim se deu e esse é, em substância, o núcleo do pacto, que, dito de outro modo, “repactuou” o chamado “pacto colonial” dos Tempos Modernos. Essa repactuação incluiu garantir-se um nível de autonomia ao Reino do Brasil, bragantino, dado a Pedro, o filho, em face do Reino de Portugal, bragantino, de João, o pai.
Essa concertação política, tutelada pelo Reino da Inglaterra, incluía, no plano interno brasileiro, como cláusula pétrea, além da conservação da monarquia e suas leis básicas, deter, sem hesitação, quaisquer impulsões de caráter revolucionário. Ora, a vontade de uma emancipação política com garantia de real Independência, implicava em crime de lesa-majestade e pena de morte sumária.
Enfim, toda a negociação para colocar de pé o Império do Brasil, tinha como pressuposto e limite a permanência, reinante, da Coroa Luso-Austríaca, por Pedro e Leopoldina. Não há que se falar em Independência sem, no mínimo, a presença de novo governo no cenário. Isso não ocorreu no Brasil. Para quase a totalidade da população nada se alterou. Tudo como dantes.
Foi duramente reprimido, na força e nas câmaras, o projeto de Independência que moveu protagonistas populares médios e pequenos, de 1790 a 1840. O que houve em 1822 foi um contra revolucionamento para nada de essencial mudar.
Vale celebrar? Vale desenfeitar a fantasia.