Proa & Prosa

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As solidões justapostas

Conheci o grande mestre após sua volta ao Piauí, fora que esteve num exílio da gleba, vivendo em Brasília, funcionário federal que era, muito qualificado

Fonseca Neto

Domingo - 17/10/2021 às 06:52



Foto: Divulgação Manoel Paulo Nunes
Manoel Paulo Nunes

Agora solidões justapostas no povo da casa lucidiana.

Ele caçoava da “indesejada das gentes”... Com o devido comedimento, claro. Não se tome maior intimidade com ela.

Víamos o mestre tocar no assunto voltando ao convívio acadêmico após os afastamentos para tratar da saúde e que se amiudaram nos últimos anos. Quando Dona Clara silenciou, ele disse: “ronda-me” também a indesejada e não sei se aguento ficar por aqui nessa solidão. Agora ele e ela dissiparam as solidões.

Calou a mais completa, bonita e vibrante voz da atual APL. No silêncio o mestre Manoel Paulo Nunes. Não aguentou ficar sem Dona Clara. “É dura a vida de dono de casa” – disse-me tempos depois da partida da amarantina consorte.

O corpo do notável mestre e educador – redundância proposital – ofertou-se às entranhas da terra no entardecer quente deste 14 de outubro. Completara 96 anos há três dias, 11. Sua obra fica. Fica porque um escritor dos bons; viveu sob o signo das letras e dos livros. Viveu para os livros. Um totem literário. Realizador nas lavras da cultura, inclusive secretariando a pasta da Cultura.

Conheci o grande mestre após sua volta ao Piauí, fora que esteve num exílio da gleba, vivendo em Brasília, funcionário federal que era, muito qualificado. Uma estada de duas décadas. Uma ida necessária, uma volta sonhada e realizada. De Brasília, viu o Brasil, isto é, os brasis, com os olhos de ver, porque já o conhecia pela leitura que fez desde cedo sobre suas literaturas.

Servindo junto ao MEC, no DF, eram os anos da infame ditadura militar trazida pelo golpe de 64. Saiu do Piauí após intenso labor pelo erguimento da Universidade Federal, para o que contribuiu, na hora decisiva, ao lado de Dom Avelar, Raimundo Santana, Deolindo Nunes Couto, Camillo Filho, Petrônio Portella, Chagas Rodrigues, Dedé Gayoso, Helvídio Nunes.  

De M. Paulo Nunes – nome literário a ornar a capa de seus livros – não é demais afirmar que um piauiense dos mais devotados ao torrão que o engendrou um ser biológico e cultural. Homem que soube apurar o sentido da luz sobre si e de si sobre o arredor. Luzes de sabedoria; homem de fundadas convicções; idealista contumaz – tudo isso traduziu numa luta que teve a Educação escolar como centro de sua vida. Quanto ele, poucos amaram, por exemplo, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. No querer educação para o povo, o “fracasso” desses mestres, dizia, também fora o seu “fracasso”. Mas jamais quis estar no lugar dos “vitoriosos”. E aqui no Piauí – não se enfeite a realidade – Paulo cantava quase sozinho a cantiga esperançosa darço-anisiana.

A literatura, os livros, sim, o seu encanto. A criação literária de expressão portuguesa, ibérica, a criação latino-americana, as lavras brasílicas; o chamado “romance de trinta” – falar sobre isso em suas rodas era ver brilharem seus olhos grandes. E vê-lo exercitar sua “crítica”, qual um mago. Daí apreciar o bom vinho ritual; o ouvido especial para a música.

Intelectual? Imaginem quanto apreciava João Ferry, dele fazendo patrono de sua Cadeira, 38, na APL. Sobre esse quê literário, a vibração dessa nervura, ele me contava com graça...  

Para Cineas ele também contou, n’Solidões Justapostas: “O professor Odilon Nunes dizia que os inteligentes de nossa família não vêm dos Nunes, que ele considerava até meio broncos... A minha avó paterna é maranhense [e] de uma família de bacharéis. Dois primos-irmãos dela foram desembargadores, jornalistas, advogados militantes. O pai não tinha formação acadêmica, mas era um rábula muito inteligente – Severino José Teixeira – meu bisavô. De forma que minha avó, por quem fui criado desde os sete anos, era uma apaixonada por Gonçalves Dias, declamava Gonçalves Dias, inclusive algumas canções de Gonçalves Dias musicadas ela sabia de cor.” Saraus trintanos em Regeneração.

Essa história refiro muito a propósito porque por ela travei uma das primeiras conversas com ele, em sabendo que eu também viera daquelas bandas de sua bisavó. Não mais faltou fios de boas histórias para puxar. Sim, os Teixeira do Alto e Médio Itapecuru, são ilustres conterrâneos meus. Gente grande.

Estava esperando passar a pandemia para entregar a ele um autógrafo de seu bisavô advogado, que achei em arquivo em Passagem Franca. E dizer a ele o nome da bisavó, que a memória familiar perdera. Sabia ele que era uma Porto... Sim: Francisca do Vale Porto, Teixeira, no silêncio desde 19 de abril de 1882. Agora já se encontraram, nas alturas, e seus mistérios; no destempo.

Um pilar na APL. Praticamente todos os que ali ingressaram nos últimos trinta anos têm nele uma referência especial de apoio. E muito devo ao entusiasmo dele pelo chamado para assentar a Cadeira 1 e pela saudação em nome da Casa, naquele 2 de março de 2010.  

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Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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