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HISTÓRIA

Um saudoso comunista

Por Wellington Soares

Quarta - 01/03/2023 às 12:23



Foto: Divulgação Livro conta história de Apolônio de Carvalho
Livro conta história de Apolônio de Carvalho

Nesses dias, uma equipe de repórteres do Estadão, cobrindo a tragédia em São Sebastião, norte de São Paulo, foi agredida por moradores de um condomínio de luxo. Além da tentativa de destruir seus equipamentos de trabalho, eles foram chamados de comunistas. Tal fato me levou a constatar uma coisa óbvia, a ignorância abissal dos bolsominions, que veem comunista em todo profissional da imprensa; e a lembrar, com saudosa lembrança, de um velho comunista que conheci nos anos 1980. De antemão, já digo que foi, entre todas, a pessoa mais impressionante que conheci na vida. Que dignificou a espécie humana pelo espírito de luta, coragem e sonho de um mundo melhor. Estou falando de Apolônio de Carvalho, nascido em Corumbá/MS, que costumava dizer: “para viver é preciso merecer viver”.

Esse sentido existencial ele só foi encontrar, após largar o desejo de ser médico, na apaixonante carreira militar, que abraçou com a mesma determinação do pai e do irmão, ambos combatentes do exército brasileiro. Sua adesão ao projeto comunista aconteceu somente ao deixar a prisão, ele que havia participado do fracassado Levante de 35, período em que conheceu alguns militantes históricos do antigo “Partidão”, a exemplo de Olga Benário, mulher de Luís Carlos Prestes, e Graciliano Ramos, autor de Vidas secas e Memórias do cárcere, importantes livros de nossa literatura. Em 1936, junto com outros 17 companheiros de partido, Apolônio seguiu para combater na Guerra Civil Espanhola – engrossando as fileiras das Brigadas Internacionalistas –, defendendo a bandeira republicana das ameaças do general Franco. Infelizmente, as forças reacionárias levaram a melhor, com apoio de Hitler e Mussolini. Derrotado, mas não vencido, ele desembarca na França ocupada, participando ativamente da Resistência aos nazistas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, recebeu do governo daquele país a mais alta condecoração: a Legião de Honra.

De volta ao Brasil, Apolônio se depara com uma situação inusitada na história autoritária do país, a legalização do Partido Comunista. Sem mencionar ainda, fato que o deixou muito contente, a eleição de uma significativa bancada no Congresso Nacional, incluindo o senador mais votado (Luís Carlos Prestes) e deputados federais do porte de Gregório Bezerra, Carlos Marighella, João Amazonas e Jorge Amado, que, mais tarde, se tornaria o  nome mais popular de nossas letras. Como alegria de pobre dura pouco, segundo o ditado popular, o registro do PCB é cassado e seus dirigentes acabam perdendo o mandato. Na ditadura militar, vamos encontrá-lo pegando em arma novamente, desta vez como dirigente do PCBR, sendo preso e torturado. Em troca do embaixador alemão, é exilado na Argélia, retornando com a lei da Anistia, em 1979.

Fui conhecê-lo na década de 1980, já como um dos dirigentes nacionais do PT, quando veio a Teresina participar de encontro com a militância local do partido. À noite, livre dos compromissos políticos, fez questão de comparecer aos folguedos juninos da Universidade Federal do Piauí (Ufpi), varando a madrugada em conversa amistosa e marcada pelo humor. Nem parecia haver passado por tantas e boas. Estava feliz e alimentava ainda grandes esperanças, como a fé inabalável na construção de um Brasil socialista, desde que, frisava sempre, com liberdade e democracia. Na despedida, refletia comigo que, diante daquele homem capaz de preservar a ternura, era possível continuar acreditando em alguma coisa.

Infelizmente, a Indesejada das gentes, como diria Bandeira, o levou em 2005, aos 93 anos, deixando um livro autobiográfico – Vale a pena sonhar-, transformado em documentário homônimo de grande sucesso, no qual o velho comunista sentenciava: “Quem passa pela vida e não tem nenhum horizonte definido, nenhum ideal que possa e queira lutar, está sujeito à mediocridade”.  Mais atual impossível. Apolônio de Carvalho, presente!

Wellington Soares

Wellington Soares

Wellington Soares é professor, escritor e um dos editores da Revestrés. Tem uma longa atuação nas áreas da educação e da cultura no Piauí. Gosta de ouvir música, ver filmes, dormir em rede, ler livros e curtir os dois netos. Sem falar que é torcedor apaixonado do Flamengo.
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