Parece redundante um prefeito chamado Urbano.
Em criança, ouvia muito a conversa de que um determinado prefeito de nossa cidade, quisera levantar um prédio para servir de Mercado Público. Cidade já então centenária e não dispunha satisfatoriamente desse equipamento típico de área urbana. Iniciativa a revelar um tino civilizador do prefeito. Mas às vésperas da inauguração da obra, um toró de chuva o derrubou por completo.
Episódio que ficou na memória da população local de então e com um detalhe revelador: o prédio caíra por uma espécie de “punição” divina ao prefeito. Digo mais sobre essa memória severa.
Corria o ano de 1944, o prefeito assumira e logo percebeu que toda a população da cidade estava mobilizada na construção de uma nova igreja matriz de sua paróquia. De mamandos a caducandos, sem distinção de sexo, todo mundo carregando materiais e dando dia de trabalho em prol da edificação da obra paroquial. Obra conduzida por um padre-pároco-líder chamado Aderson Guimarães Junior.
O novo prefeito achou aquilo importante e teve a ideia de chamar o povo a fazer o mesmo, construindo o Mercado Público da cidade. O povo não atendeu ao chamado do administrador municipal e ele teria acusado a população de preguiçosa, ignorante e coisas assim. Queixava-se: por que a população trabalha de graça para a Igreja e não fazia o mesmo para a Prefeitura?
Tomou uma atitude: resolveu usar os presos da Cadeia Pública para acelerar sua pretendida obra. Mas poucos eram os presos... Daí partiu a praticar uma antiga perversão brasileira: prender maciçamente o que chamava de “vadios” e “desocupados”, “beberrões” e “bandoleiros”, sobretudo em fins de semana, os quais no dia seguinte já estavam forçadamente no canteiro de obras... Revolta surda no povo humilde.
Feita a obra – malfeita –, ocorreu o que já se disse. De novo o gestor se enfurece e joga a culpa nos “vadios” pelo infortúnio do desabamento. E a igreja, obra complexa e majestosa para o tempo, inaugurada em 1945, encontra-se lá até hoje, firme. Ficaram as lições.
Sustentado por uma ala partidária de longo mando local, o episódio desgastou muito o prefeito e seu grupo político. E, senão diretamente por isso, a fama de truculento, sua queda se fez inevitável. Adversários se animaram e ele saiu do cargo e da cidade praticamente expulso.
Um chefe adversário dele impôs-lhe pesada humilhação: tinha sítio e morava a uma légua da cidade, convidou o prefeito para um almoço, a sós, de paz, até enviou cavalo bem selado, por homem de confiança, para facilitar o passeio... Prefeito colocou o pandolô de lado e atendeu ao “delicado” convite...
Chegado o visitante chegou no terreiro da vivenda – no Donquer –, o anfitrião do almoço havia lhe preparado um rechaço, inclusive com tiros, como se ali tivesse acontecendo uma invasão à sua propriedade. Mandou desarmar o Interventor e o fez retornar “de a pé” para a cidade, negando-lhe até um “copo d’água”. Proibiu qualquer dos seus oferecer companhia nessa volta. E desse lugar até a sede municipal, pela rodagem, ia passando pelo terreiro de sitiantes adversários.
Mais: consta que o chefe do Donquer “ordenara-lhe” deixasse o cargo e que “anoitecesse e não amanhecesse” na cidade. E assim se deu: foi-se embora às pressas, deixando a responder pela Prefeitura a sua mulher. Mas levou consigo o livro-caixa do município.
A cidade-cenário desses fatos é Passagem Franca, MA. O prefeito-interventor chamava-se Urbano Portella Nunes, natural de Valença do Piauí, servidor da Fazenda maranhense e casado com uma cidadã de lá, irmão de chefe político influente, o que ajuda a explicar a referida nomeação prefeitural.
Esse episódio diz muito do Brasil. Diz muito da longa formação social brasileira, atravessada pela ação das capatazias escravizadoras e pelo mandonismo renitente. Por outro lado, revela o quanto a implantação da Igreja Católica também se dá historicamente no coração popular. E chama a atenção do desencontro entre o exercício da cidadania e a comunhão cristã.