Tim e Gal
18.11.2022
A geração de brasileiros, preponderante nestes últimos 60 anos, conhece a felicidade de ter vivido no tempo da arte maior cantante de Tim Maia e Gal Costa. Essa dupla já partiu definitivamente, levando as cordas de seu vocal. Mas deixaram a voz solta “nas estradas”, inclusive nos caminhos da emoção de milhões de nosostros.
(No entretanto, homem da travessia, Minas se despede, diz que fica, e sua voz também estridentemente bela, ecoa sobre os confins onde o coração de estudante).
Tim Maia, carioca; Gal Costa, baiana. Sua voz, dela e dele, marcaram de maneira intensa, a sensibilidade de seus patrícios brasileiros. Levaram ao requinte-limite da expressividade tonal, o potencial de voz que dispunham. Ele, tom agudo, envolto numa certa rouquidão a amaciar esteticamente os graves do canto. Ela, a navalha fônica-vocal perfeita, incapaz, porém, de arranhar as delicadas estruturas auditivas de quem quer que fosse.
Esses dois fabulosos artistas partiram relativamente novos, ele mais que ela. Em meio a muitos cantores que o Brasil, e tantos de outros lugares que aqui se cantam, e encantam a audiência brasileira, Tim e Gal às vezes parecem únicos.
Não são. Singulares, sim. Cada qual elaborando e comunicando sua arte e agradando à alma de uma parcela considerável da população. Não do povo todo em igual tempo. Muito diversas as tradições que movem a criação composicional-musical no Brasil, eles fizeram escolhas, ajustaram-se ao gosto de determinados públicos.
Quando se diz – tal eu digo – grandes cantores, não há que foram grandemente amados pelas multidões, abstraídas as referidas tradições. O lugar da recepção, pelas camadas da gente brasileira, da imensa criação musical local, tem muito a ver com engajamentos culturais na dinâmica da sociedade, atravessados inclusive por identidades forjadas na dinâmica das classes sociais.
No Brasil se exprimem o timbrar de raízes puxadas do tempo percussivo/cantante/dançante de seus povos originários, de ancestralidade comprovada, da chamada “ameríndia”; de raízes puxadas das Áfricas, em particular das regiões em que se sequestrou milhões de nativos e assim se os trouxe para este lado do Atlântico – o vozeirão timaiano reponta a voz forte dessas tradições, em particular; de raízes deitadas aqui pela imposição colonial-colonialista euro mediterrânea. É um país que lavra cantares em variações sem fim.
Gal Costa – pensando essas raízes – desenvolveu praticamente todas as variações do cantar brasiliano. Ter nascido em Salvador, cabeça da Bahia, certamente que ajudou a ela emprestar sua voz especial ao baianês de tambor e berimbau e a toda genuína tradição do canto português.
A história de MadaGraça, transa a musicalidade baiana de “entre a capela e o calundu”, o coro de coloniais igrejas e os terreiros de todos os santos e espíritos.
Antes e depois de Gal e de Tim, o Brasil é um país de muitos cantores/cantadores; este é um país de prosadores e tocadores. Se cantar fosse expressão exata de coração feliz, não haveria dúvidas de que o Brasil teria o seu, transbordante de satisfação. Não é assim...
Fato é que – muito triste, sim –, perdemos Gal e Tim, perda que dói. Claro que suas vozes, voz da minha geração, pela tecnologia veraz da gravação, ressoará para além dos atuais viventes.
Mas eles, nos diversos palcos, farão muita falta.
Tim, no drama do beco, trepidante entre a agrura da vida real e a pulsão da arte visceral e do canto agudo de perfeição. Nele, as madrugadas explodindo em luz na antecâmera do prazer esgotado.
Gal, leve e solta, eva brejeira, sabiá e pintassilga, lindeza de lenda. Pintou e sensuou as primícias vermelhas com que a madrugada cria as manhãs. Dela, a boca rubra para tingir a revolução do amor radical.