Proa & Prosa

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Padre Raimundo, um mestre

Escolhido primeiro reitor da Ufpi, a ditadura militar o barrou com sua espada obscurantista.

Fonseca Neto

Terça - 10/11/2020 às 19:18



Foto: Divulgação Padre Raimundo José
Padre Raimundo José

Um padre que a razão levou a perfilar-se ante a face divinal reiterada. Estou falando de Raimundo José Airemorais Soares, que acaba de partir de entre os viventes, tornando ao pó, agora dado aos pósteros.

Quem ama o saber, quem adota o conhecimento como orientação inafastável, enfim, quem se deixa iluminar, tem na pessoa exemplar do padre Raimundo – agora em nós uma referência memorial portentosa – pistas para avançar caminhos sinalizados na dignidade.

A Igreja Romana, em 20 séculos, tem um acúmulo consistente de saberes que lastreiam sua edificata sob a inspiração cristã. Todo bom estudioso sabe que o acúmulo estruturante dessa inspiração religiosa e de sua Igreja têm suas bases numa temporalidade e regionalidade ainda mais profundas no chão da História. Raimundo, fazendo-se dela um padre, desafiou-se ir buscar, nas fontes, o núcleo de conhecimento tal, seus lampejos filosofais. Poliglotou para tanto avançar. Além do grego que aprendeu muito, da árabe-hebraica fonte, sobretudo a bíblica – não fora o ataque que sofreu o seu núcleo pensante –, a esta altura é possível que já tivesse ele aprendido o mandarim e conexas, para entender a pujante orientalidade em que bebemos os filhos históricos de Homero.

Não somente estudou aplicadamente tudo isso, mas a tudo estudou também experimentando em sede sensível os lugares e referentes do recorte civilizatório que partilhou. Conheceu a Europa, desde Roma. Fez estudos no norte continental canadense. Provável que tenha ido ao Oriente Médio.

Mas o padre Raimundo era aqui do vale do Punaré, e aqui do vale não arredou pé. Chamou a si tarefas desafiadoras, ao par com o sacerdócio engajado, a exemplo do papel de educador. Sobrevinda a era arquiepiscopal de Dom Avelar Brandão Vilela, em Teresina, um bispo relativamente jovem e na vida social um provocador indomável de iniciativas, o também jovem padre a ele se junta na partilha de grandezas a serviço desta terra dos filhos de Manoel e do padre Miguel.

Cercado o bispo de uma fração de intelectuais não reacionários aqui da Caldeira, sobre a pessoa do padre e seu saber exponente, iria recair a grande tarefa de implantar uma Faculdade para formação de agentes para o magistério das classes de ensino básico no Piauí, havido por acanhado, no acanhamento geral e conformado do atraso piauiense.

Essa instituição escolar superior – a Faculdade Católica de Filosofia – é filha dileta desse corajoso bispo e do padre Raimundo, e repita-se, de mais meia dúzia de figuras clarividentes, acolhidas pelo imã virtuoso de sua liderança, naquele contexto final dos 1950. Circulavam então mais intensamente ideias de que a pata rachada do boi das malhadas cedesse lugar ao chão industrioso aberto pela tromba dos tratores. Balançada a poeira do tecido social piauiense com aspirações de progresso.

Passada uma década da implantação da Fafi, e uma obscurantista ditadura imposta desde 1964, o bispo e seu padre-educador-mor estarão no centro do esforço de se levantar uma Universidade no Piauí. Novamente serão decisivos nesse passo. Como serão decisivos em não deixar a espada da ditadura, e a tirania militar, ferir de morte a própria Fafi, lastro indispensável de viabilização da própria Ufpi, que, convertida em projeto da própria ditadura, fora colocada de pé entre 1968 e 1971.

A proximidade com Avelar permite ao padre-filósofo acompanhar de perto o momento mais esplendoroso do arcebispo de Teresina, que ganha o mundo e se faz prócer maior da Igreja latino-americana, nas sendas abertas pelo tempo pós-conciliar. O Vaticano II expandido.

A Igreja diocesana de Teresina e suas instituições seminariais foram território do pasto, do pastoreio essencial desse mestre. Mas a Ufpi foi um destacado espaço de articulação esperançosa dele, e dela, um ícone; ele, uma âncora lá dentro, sobretudo para jovens estudantes lutadores contra em prol da causa da humanidade.    

O mestre deixa vaga a cadeira 20 da Academia Piauiense de Letras. E cheio de livros e ótimos exemplos o Piauí.    

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Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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