Miguel Torga lembra “a imagem do tempo sobreposto, cada época a devassar a precedente, e todas abraçadas no mesmo terror dum desabamento iminente e final”. É como Márcio d’Amaral perfila a figura de Olavo Pereira da Silva Filho, tal um anjo redentor ante a iminência desse desabamento e tentando deter a fúria desse cataclisma.
Um cataclisma telúrico. D’Amaral evoca Torga quando apresenta Carnaúba, pedra e barro na capitania de São José do Piauí – monumental e obra maior, litero-memorial imagética, que se publicou sobre o Piauí até hoje.
“Este é um livro de pedra e voz, árvore dura e memória, barro de casa, terreiros de barro, barro nas almas. São José do Piauhy”, reponta.
Com as artes do tempo dá-se forma à poética. Pode?
Olavo capta os sinais da perfeição nas coisas e se torna arquiteto. Poderia ter se tornado um oleiro; um tecelão com fibras tiradas do tucunzal; um tanoeiro forjando e espiralando tontas serpentinas; o maestro alcançando a harmonia; um cinzelador esculpindo a tonsura de santo Antonio Aparecido lá no Surubim. Revela-se um apaixonado, rasgando as cortinas que ousem recobrir a primeira das maravilhas, as curvas evanas que estetizam a vida.
E como arquiteto submete-se, servo voluntário, aos caprichos da beleza. E tormentosa e sem horizonte bem delineado a pergunta nada cabal: arquitetura é ou não uma arte? Cuidemos de Olavo, envolto na poética que academias não inventam.
Os olhos dele abriram e o poeta Dobal enxerga o que Olavo logo veria nos relvados e na humanidade da Campo Maior natal: “Ai campos do verde plano / todo alagado de carnaúbas . // Ai rios breves / amanhecidos na várzea longa, / cabeças d’água do Surubim // Ai campos de criar. Fazendas / de minha avó onde outrora / havia banhos de leite. Ai lendas / tramadas pelo inverno. Ai latifúndios”.
Olavo deixa tais campos planos e sai do Piauí para Minas com esses fardos farfalhando em seu coração e juízo. Lá se faz arquiteto-técnica, entre caminhos tortos a serpentear desplanos. Igrejas de cantos redondos a liberar sem arranhos a dança das brisas serranas.
Torna-se nas Gerais o arquiteto divinamente incomum. E com o alforje pleno da poesia potente de seus pagos maiorais, logo alcança aquele posto de arrimo protetor contra o desiderato do “cada época [devassa] a precedente”.
Mas Olavo – um dialeta-esteta no festim da natureza e da cultura! Não, morte não: viva-se a fruição das coisas belas: por que afeiar o valor essencial da ancianidade se o existir é o atravessar o corpo físico e histórico dos materiais arquitetáveis? A artesania confere à pedra dura uma alma-beleza; a carne mole desvanece e volve mineral.
Com essas cargas e impulsos da poesia movendo suas mãos, o ser olhante olaviano deixa-se dominar pela magia do fotografar. Seu olho de águia romântica captura a natureza chã, riscada sob os pés, os caminhos sertanejos. Também as cores da infinitude do horizonte beijando a cultura milenar. Olavo vê nas ruínas de currais antigos de pedra o toque da arte chinesa de amurar a vida social... E vislumbra as linhas românicas de Vitruvio nas tenras casas de fazenda e nos frontões das capelas e matrizes de rosto virado ao poente...
Era 1973, Olavo no Maranhão. Ao cabo de algum tempo, elaborara um dos mais relevantes repertórios sobre a outrora chamada Cidade do Maranhão. Torna-se proeminente conhecedor não somente dos sítios da Ilha, mas das cidades antigas da Baixada... Dessa experiência, publica Arquitetura Luso Brasileira no Maranhão, trabalho mais significativo, lastro e arrimo da inscrição da capital dos Maranhões no Patrimônio Mundial.
“Quando me dediquei ao estudo da arquitetura luso-maranhense, já assistia perplexo à mórbida transformação que sufocava e conduzia aquele acervo a perdas irreparáveis. [...]. Embora trépidas, São Luís e [...] ainda nos comovem e encorajam a resistir à mutação descomedida. Por isso devemos zelar por essas cidades [...] e evitar a visão fatalista do tudo se transforma, enquanto ao necessário fim das coisas”. Escritas de Olavo que resumem suas inspirações essenciais.
E em mim impactaram o projeto de estudar o que historicamente forja o dilema “fatalista” do destruir/conservar todas as coisas. Por isso fiz “A pátina do tempo...”.
Olavo foi tragado na voragem de suas afeições aflitas ante o descuido telúrico de sua gente. Guardamos seu corpo às dissipações do tempo, na última terça-feira, 25. Sobrevivem a força do artista e de seu contributo à perenidade do belo.