O promotor público da cidade, sentado ao chão, no meio de uma roda de crianças, a fazer “papagaios”, “surus” e “curicas”, com terna paciência. Manejava como ninguém, tesoura, talinhas de buriti, papel de seda, linha e muito grude de tapioca.
Há memórias que faz muito bem compartilhar. Há histórias cujo registro convém exemplificar. É mais que um relato das coisas de minha municipalidade original.
Filho dos arredores de nossa cidade-sede, o sítio familiar do Donquer, ele nasceu dia 14 de março de 1932 e chamava-se Raimundo Saraiva Pinheiro, filho de Luiza Saraiva e Faustino Pinheiro da Silva. Por lá se costumava chamar Raimundo por Doca ou Dico, ou também Mundoco ou Mundico, este o caso dele: Mundiquinho Saraiva. Nascido na média aristocracia local, de pequenos sitiantes, o pai um letrado, bem posicionado na burocracia do lugar, rábula provisionado.
Mundico estudou na ambiência local e não demorou descer os sertões rumo a São Luís do Maranhão. Na cidade-capital, antecedido por Zamith, o mais velho dos irmãos, ingressou no curso de Direito, alcançou o grau e não demorou obter designação para sua comarca natal, Passagem Franca, no exercício das funções de promotor público. Como se dizia, saiu criança e voltou autoridade.
A nossa era uma comarca intensa para as condições do lugar, sem açodamentos criminosos maiores, muita trica de vizinhança, bebedeira e de roças. E muito agitada por puxos e repuxos das intrigas das “alas” partidárias disputando a prefeitura e outras posições do serviço público do e no município. Faustino fora prefeito, um aliado do cardo-germanismo, uma das referidas “alas” em disputa.
A chegada de Mundico, “doutor”, como todo bacharel era tratado, foi saudada por muitos. Honra a Dona Lu e a Faustino, homem bom, fiel e honesto amigo de muita gente. Nada mais queria que botar para estudar os filhos e que não lhe deixassem sem uma folha de jornal para ler, algo relativamente incomum naquele rincão.
Assumindo a promotoria, Mundico enreda-se nas questões próprias dela, de cartório em cartório, delegacia de polícia, onde preciso... Até no meio da rua!
“Meninos eu vi”. Eu menino: certo dia, ainda cedo, desponta em nossa rua comum do Grajaú, da ponta e subindo rumo à cadeia pública, o delegado de polícia, cruelmente enxotando um homem, acompanhado de barulhento cortejo.
Alertado sobre o episódio, ainda em trajes de pijama daquele amanhecer, Mundico sai de inopino de sua casa, constata o drama, indaga sobre aquela situação em que a força sobrepujava o mínimo de dignidade do “preso” conduzido... Houve um ensaio de desacatamento ao promotor. Ele, então, toma o “cidadão” pela mão e o retira das garras do delegado e do cortejo infamante. Leva-o para dentro de casa e logo mais o conduz normalmente à delegacia. Não devo esquecer o que recordo dele dizendo, vi e ouvi: “Em nome da lei te devolvo a dignidade de cidadão”. Complementou e eu também não me esqueço: “Chegou o tempo de se obedecer a lei em P. Franca”.
Outra: agarrando-me na beirada de baixo da janela do salão da Câmara onde ocorria uma exaltada sessão dos “jurados”, como se dizia lá, escutei e vi, por pedaços, um discurso inflamado do jovem promotor pedindo a condenação máxima de uma mulher acusada de matar o próprio pai, a machadadas, num lugar da zona rural da comarca – e ele brandia à mão a arma do crime. Aquilo tudo me impressionava – não sei porque, atraia-me ver alguém “falando bonito”, o tom dos velhos arroubos, sobretudo dos palanques em tempo de eleição.
E é inesquecível as cenas do Mundiquinho do Faustino a fazer nossos surus. E, claro, nos ensinava a soltar e sentir a emoção maior de vê-los a flanar pelos ares de maio a junho. Ele ensinou seu cachorro “de balaio”– o Rob – a brincar com bolas de borracha. Era um meninão. Aliás, cheio de sobrinhos, todos meus vizinhos.
Quando chegou a “luz da sudênia” em nossa rua, com seus fios metálicos e nus, os entendidos sapecaram: “tá proibido soltar papagaio”. Claro, um libelo que o bom Mundico jamais assinaria.
(PS: a palavra “pipa” só ouvi quando cheguei em Teresina).