Proa & Prosa

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Militana

O racismo e suas modos adjacentes manifestos na sociedade brasileira em sua formação histórica, experimentam uma floração medonha

Fonseca Neto

Segunda - 11/05/2020 às 23:55



Foto: Divulgação Escravidão
Escravidão

A regressão civilizatória imposta pelo bolsomorismo vai cumprindo seu projeto de aniquilações sobre as costas do povo trabalhador. É preciso resistir à destruição célere de sistemas de direitos fundamentais e sociais asperamente alcançados no Brasil. Nunca universalizados, não esqueçamos.

O racismo e suas modos adjacentes manifestos na sociedade brasileira em sua formação histórica, experimentam uma floração medonha. A peste desta hora, danação entre as danações, faz repontar os mais diversos instintos, inclusive o vontadoso da eliminação de desvalidos – o nazismo em viço verde-amareloso na praça dos três poderes celebra isso. 

Recordemos hoje a história de Militana, mulher piauiense, mártir da luta contra a escravidão, desgraça que volta, no querer do regime da infâmia.

Trabalhadora escravizada em Picos, sertão do Piauí. Era o ano de 1887. Militana se recusara a receber surras sem reagir. Para deter sua rebeldia, seu dono, vilipendia seu corpo. Sevicia-lhe. 

“Estava o ilustrado dr. juiz de Direito da comarca de Oeiras dando audiência, quando nela apresentou-se a desgraçada trazendo ao pescoço uma gargalheira de ferro pesando vinte e cinco libras e da qual pendiam grossas correntes que, enroscando-se-lhe ao corpo como uma serpente, iam prender-se-lhe à cintura”.

“Chamado imediatamente um ferreiro, foi a pobre aliviada da tremenda carga, com a qual andou umas dezoito léguas a pé, que tantas são as que medeiam da fazenda Gameleira, em Picos, onde mora seu senhor, à Oeiras”.

“Procedido o corpo de delito pelos distintos facultativos drs. Augusto Lavor e João do Sacramento, ficaram verificados os estupendos castigos infligidos à pobre mulher, para quem pedimos clemência dos homens e a justiça dos tribunais”. 

“As nádegas, esfoladas e retalhadas a chicote, estavam em carne viva! Os pulsos e tornozelos apresentavam sinais de terem sido queimados a tição de fogo!”

“Causava indignação a vista dessa mártir de uma instituição que expira e da cobardia de um monstro que afronta as leis e a sociedade contando com a impunidade, que já começa a cercá-lo com o seu silencio desumano”. Em Diário do Maranhão, 002/07/87, p. 2).

O juiz nomeou curador para ela. O promotor, apesar da evidência do crime, requereu o arquivamento do caso. Promotor “primo do criminoso”. O curador, porém, não se resignou em que ficasse impune tamanha hediondez.

“A opinião pública de Oeiras, a velha cidade da paz, da boa sociedade e das mais honrosas tradições, está revoltada com justa razão diante de um crime tão bárbaro quanto cobarde, exercido contra uma mulher e escrava vítima inconsciente da sorte que a fez fraca e da lei que a fez sem direitos!”

“Mas para vingar a dignidade humana ofendida nessa desgraçada mulher, mártir da sua condição e dos preconceitos de uma era já extinta, ficamos nós de pé, nós os jornalistas independentes, que a defenderemos contra a prepotência do seu senhor, irmão do grande e incomensurável dr. Antonio Coelho Rodrigues! O major Ricardo Rodrigues de Souza Martins merece uma severa punição!”

“Sobre Militana ele não exercerá mais seu furor dominical, porque alguns cavalheiros de Oeiras cotizaram-se e libertaram-na”. “Apesar, porém, do crime constatado pelo corpo de delito e pelo testemunho de uma cidade inteira, tememos bem que os agentes dessa situação procurem encampá-lo, protelando a boa marcha de justiça, que não tem um advogado que a represente na comarca, porque o promotor, criatura do mandão picoense, não cumprirá seu dever promovendo a acusação do potentado criminoso e irmão do donatário desta terra infeliz”.

São esses trechos de reportagem sobre o fato, publicado em jornais de Teresina, à época, e também em São Luís, e alhures. A impunidade reinou. Processo desaforado para Picos, no cartório “furtaram” o laudo pericial. O juiz de Oeiras foi punido. O seviciador defendeu-se, inclusive em jornal, alegando que o Código Criminal era do seu lado, o que fez foi na “esfera doméstica”. E que o acusavam com objetivos políticos. 

O irmão famoso do monstro escreveu peça em defesa do mano. E logo em 88 veio a abolição que declarou a liberdade que Militana conquistara com seu martírio. Lei de 13 de maio “que a fez sem direitos”. 

Militana viveu exatos cem anos após Esperança Garcia. Inscrevem-se na legião gloriosa de lutadoras da humanidade contra a tirania. 

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Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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