Comer é imperativo do existir vivo. Comida não passa de elaboração cultural no reino animal. E nesse reino, espécies de bicho vivem a comer as demais espécies. Comem também os seres do reino vegetal. Mineral?
Em meio a isso, entre humanos, o que se vai comer? Tudo. Ou quase. Recordemos a máxima: “na natureza nada se perde e tudo se transforma”. O que hoje é molécula do corpo de um jumento, ontem no corpo do Zé ou no corpo de uma árvore formosa ou ainda de uma folha de malva.
Na longa história humana, nota-se uma grande variedade nas escolhas comíveis, conforme o tempo, o lugar, a contingência de cada grupo ou pessoa isoladamente.
No continente Brasil, há uma variedade imensa de animais, plantas e frutos que servem de comida para humanos. Parece inacreditável – mas salta aos olhos – que no Brasil haja fome, gente morrendo por “falta” de comida. Há, sim.
Agora vejo nota jornalística que ressalta o avanço no Ocidente da prática de humanos comerem o que por aqui se chama de inseto, a entomofagia. Há muito se sabe que noutros continentes se come cobras e lagartas. Na China, pelos milênios, come-se todo tipo de bicho. Em muitos lugares se pega, cria e come ratos e sapos.
“Além de proteicos, grilos, gafanhotos e formigas são ricos em gorduras boas. Mudança cultural é necessária para que a entomofagia tenha aceitação da população”. Na reportagem sobre o assunto – na revista Brasil 247 –, os autores e relatórios de pesquisa, inclusive de organismos internacionais, acentuam “que esses animais são ricos em micronutrientes como cobre, ferro, magnésio, manganês, fósforo, selênio e zinco, além de riboflavina, ácido pantotênico, biotina e, em alguns casos, ácido fólico”. Esses estudos e seus relatórios se fazem tendo em mira negócios na área de fabricação alimentícia, além de se manifestarem acerca da fome e desnutrição de milhões de pessoas.
E são muitas as estratégias para superar padrões culturais tradicionais que formam a percepção de animais tidos por nojentos e repugnantes. Mas tudo muda...
Nascido e criado no sertão dos cocais do Maranhão, Passagem Franca, zona em que chapadas vão escurecendo em mata amazônica, com fartura de insetos para todo lado, tenho vivo o espetáculo dessas espécies no festim natural das estações. Nunca ouvi nem falar que gente as comia. O próprio gafanhoto, ainda miúdo, formava uma colônia sobre a copa de pequenos arbustos, de uma pindobinha, por exemplo. Mais crescidos, antes da dispersão, eram chamados de “soldados”. E logo se passavam às lavouras.
Pelos caminhos, sobretudo de manhã cedo, eram os formigões atravessando de um para o outro lado. Uma espécie mediana – não sei se todas – perfilava-se para conduzir folhas repartidas, cada uma, um pedaço; às vezes algumas se juntavam para levar pedaço maior. O formigão chamado tanajura, rechonchudo, este já havia por lá quem o fritasse e comesse com farinha.
Entre os besouros e cascudos, eram muitas espécies, naqueles caminhos de roça, nos quintais domésticos, nos embrenhos. Alguns muito bonitos, com ornatos chamativos, sobretudo nas cabeças, longos focinitos, alongadas antenas, couraças estilosas, a exemplo do serra-pau e do rola-bosta, que os mais recatados chamavam, na frente das crianças, de “tomba” – e toda criança via o que eles faziam a toda hora rsrsrs.
Tantos: o cavalo do cão, na categoria de marimbondão vagaroso; o besouro mangangá, voador; os gongos, ou gogolô de coco babaçu, larvas gordurosas criadas dentro da amêndoa e se comia crua ou feito frito; as lagartas, de toda forma, cor e jeito de se mover; embuás e grangugir. E os lagartos: calangos, labigós, bico doce, entre os pequenos; tiús e camaleões, maiores – numa cachaçada de adolescência, matamos um destes no quintal do padre, e comemos, na amada cidade de Colinas, preparado pela mãe do colega Vitorino, dona Maria Helena. Nosso dia de cearense.
Penso que não será tão difícil avançar nos paladares e estômagos, doravante, essa empreitada entomofágica. Antes ela que a volta do banquete antropofágico.
Que tais mudanças sobrevenham sem ameaçar o equilíbrio engenhoso da vida natural. Se melhoram as condições de existência dos humanos, não podem, ao revés, ética radical, varrer da face vívida da terra, espécies que compartilham o festim dos viventes.