Claro que sei que Constituição é letra de pactuação política e seu vigor vem da correlação de forças e tem expressão meramente histórica. Não é escritura religiosa. Mas também sei que o jogo da política não há que ser inexoravelmente um campo de torpezas.
No Brasil, rasgar Constituição é esporte dos donos que “a ferro e fogo” conservam o poder em suas mãos contra as maiorias sociais. Não há exceção: todas foram rasgadas por golpes para afastar a prevalência da soberania popular.
Apenas dois exemplos: a de 1824 foi rasgada para declarar De Maior uma criança que significava a ordem opressora contra um revolucionamento popular em quase todo o chão brasílico. A atual, rasga-se, um golpe seguido de outro, para manter a entrega do Fundo Público a oligarquias banqueiras insaciáveis que, de fato, mandam.
Um desses golpes na Constituição derrubou a última presidenta eleita na relativa normalidade legal, e em seguida, ilegal e violentamente, prendeu o candidato mais chegado ao povo, impedindo-lhe voltar à presidência, tomada a seguir pela impostura, autodeclarada de Direita, versão extrema.
Direita, filha da ditadura, em qualquer versão, a militar sua predileta. Contrária aos valores mais bonitos do engenho social humano, sobretudo a essencialidade da vida em oposição à hediondez da morte. A direita no poder no Brasil, extremada, tem o matar como consigna e projeto. Conquistas humanitárias causam-lhe ódio.
O golpe desta semana em trânsito é para manter no topo da República uma coligação de corruptos-macro, inimigos da Humanidade.
É um insulto mudar a Constituição, por mero acordo golpista, num só dia, sem razão superveniente, argumento validável, e “relator” emendando texto, “nas coxas” e tribuna.
Insulto? Sim, milhões de brasileiros e todos política e juridicamente mais atentos sabem que é. Mais grave é que o Congresso todo está rasgando, a agora ex “cidadã”, pelo cálculo reeleitoral a qualquer preço. Danem-se práticas republicanas. Ao brejo, a ética, a decência, o sentido fraterno do coletivizar humano. Esse voluntarismo reeleitoral imediato desgraça o futuro.
Um detalhe, mais que sombrio, assim vejo: o apoio da Esquerda a esse golpe de pura intenção reeleitoral e cálculo de esperteza contra a estabilidade de instituições, tão descompromissadas, já, com as referidas práticas e valores maiores. E amigos me dizem que foi acertada a posição, pq pobres terão 600 reais até o fim da eleição e o Inominável, eleitoralmente, não vai “faturar sozinho”. Argumento fraco; despojado de respeito a eleitores. E o “estado de emergência”?
Esquerda partilha a manobra reeleitoral: tolos acreditam que o STF derrube tal PEC por ser “inconstitucional”. Ter sido praticamente unânime o logro contra a CF/88, nesse lance do jogo, “dispensa” o STF de agir. Esquerda, esquecida de que sua própria relevância consiste em ser instrumento histórico de busca da sociedade justa. E é justa a posição de se derrotar o fascismo. O que não é justo é a tapeação contra o interesse republicano mais duradouro.
Sondagens até aqui indicam uma tendência de eleição de Lula, em outubro que vem. Mas o Congresso não deve se renovar no sentido republicano: as facções oligarquizadas, na simbiose riqueza privada e “políticos”, têm quase R$ 50 bilhões do Erário para comprar voto.
Essa PEC reeleitoral-debochada, na véspera do pleito, naturaliza ainda mais a percepção de que o jogo jogado, sobretudo por congressistas – e agora vai ficando difícil dizer que há exceções – é um desolador sinal de desesperança. Por quê? Quem manda é o Congresso, comprando e vendendo voto.
Claro, repita-se, o desastre ainda mais devastador é a continuação do obscurantismo fascista, cuja força na mente conservadora popular é maior do que parece. Mas equívoco reiterado esse de depositar “todo” futuro sobre a pessoa de Lula, que é liderança extraordinária, mas que não tem – nem precisa ter – vocação de ditador e chefe de bando miliciano.
Difícil mudar algo com o Congresso. E com essa PEC, ficou mais tranquila a reeleição dos inimigos históricos do avanço. Inimigos do próprio Lula. Seria tão alentador, o povo, às ruas, pelos valores da liberdade, igualdade, fraternidade. Por República. Contra a gula capitalista, de morte, verdadeira hecatombe.
Fonseca Neto, historiador, da APL.