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Previdência: um direito e sua garantia

A história do sindicalismo e dos partidos de esquerda é a história dessa luta, dessa caminhada

Antônio José Medeiros

Quarta - 11/12/2019 às 13:34



Foto: Reprodução Previdência Social
Previdência Social

Previdência é um direito social; e como todo direito, deve ser garantido pelo Estado Democrático. Nesse sentido, a Capitalização como regime básico da previdência é inaceitável; atualmente, só os ultraliberais quase-fundamentalistas o defendem.

Os regimes de previdência são uma resposta à situação do trabalho no mundo moderno, que envolve aspectos econômicos, sociais, culturais, políticos e fiscais.

Nas sociedades tradicionais, a maioria da população vivia da agropecuária e do artesanato e a unidade de produção típica era a família. Com a urbanização e o predomínio das atividades industriais e de serviços, a unidade de produção e de prestação de serviços passa a ser a empresa. E os trabalhadores se tornam assalariados; o trabalho, como regra geral, assume a forma de emprego.

Do ponto de vista político, a grande mudança foi a emergência da democracia como regime de liberdade individual e como regime da soberania popular; o súdito se torna cidadão. A cidadania se amplia para os assalariados e as mulheres, que se tornam sujeitos políticos. A conquista dos direitos sociais é a resposta política à nova situação econômica do trabalho, o assalariamento.

Os direitos sociais têm a ver com as relações e condições de trabalho (direitos trabalhistas) e com a falta de condição ou de oportunidade de trabalhar (direitos previdenciários: aposentadoria, auxílio-doença, seguro-desemprego e a renda mínima, que no Brasil assumiu a forma de Bolsa Família). Uma terceira dimensão dos direitos sociais é a promoção de maior equidade e do bem-estar pela oferta de serviços públicos e implementação de políticas sociais (educação, saúde, assistência social, moradia, defensoria pública, transporte e outros mecanismos de salário indireto).

A história do sindicalismo e dos partidos de esquerda é a história dessa luta, dessa caminhada.

Há toda uma teorização elaborada por intelectuais (juristas, economistas, sociólogos, administradores e contadores) que contribuiu para criar uma cultura do bem estar e seguridade social. A partir de Constituição de Weimar na Alemanha, em 1919, além dos Títulos da “Organização do Estado” e dos” Direitos Fundamentais”, toda Constituição passou a ter o Título “Da Ordem Econômica e Social”. O Estado Social ou do Bem Estar Social (Welfare State ou État Providence) ultrapassou as fronteiras políticas e ideológicas dos partidos. Só os reacionários, hoje numa aliança espúria com os ultraliberais, negam essa cultura, esses valores de solidariedade social, procurando desqualifica-los como “marxismo cultural” ou “comunismo”, manipulando os aspectos criticáveis que as experiências do socialismo-comunista apresentaram na União Soviética, Leste Europeu, China, Cuba e outros países. No nível cultural, dos valores, o que está em jogo não é apenas o regime político, mas o processo civilizatório.

A Igreja Católica mesma despertou para a “questão social” e desenvolveu toda uma doutrina social. A encíclica do Papa Leão XIII de 1891 chama-se Rerum Novarum (Das Coisas Novas) e tem como subtítulo “Sobre a Condição dos Operários”.

Para entender a Previdência como direito social a ser garantido pelo Estado é preciso, além dos aspectos econômico, político e cultural, considerar mudanças na ordem social. Os idosos ou doentes (em especial os inválidos), nas sociedades tradicionais, recebiam a proteção ou o acolhimento da família. Por outro lado, como a maioria da população vivia em comunidades menores, havia uma solidariedade comunitária, a “caridade pública” como proteção informal (quem não se lembra dos esmoleres em nossas pequenas cidades?).

As igrejas sempre tiverem suas “obras de misericórdia” (santas casas de saúde e asilos para idosos). Os ricos, muito deles católicos ou evangélicos praticantes, ajudavam as entidades das igrejas. Os novos ricos secularizados ou mesmo ateus passaram a manter obras filantrópicas. A palavra filantropia (amor ao homem) substituiu como expressão mais moderna e respeitosa a palavra “humanitarismo”, pois as ações humanitárias se inspiravam mais na misericórdia e na piedade do que na solidariedade.

Como já lembrei, a emergência dos assalariados como sujeitos políticos, pela extensão do direito de voto, trouxe a questão social para o âmbito do estado agora mais democratizado. Surgiram as políticas públicas sociais, ao lado do fomento ao progresso (infraestrutura, financiamento, incentivo fiscal e promoção comercial externa).

As formas anteriores de proteção social não desapareceram; até se combinam. Basta ver nossa experiência atual: os abrigos para idosos e doentes (de câncer ou de aids) são mantidos com apoio social, convênios com o poder público e com a gestão das aposentadorias ou BPC dos abrigados.

As Igrejas continuam defendendo esse solidarismo como manifestação concreta de solidariedade, incluindo o voluntariado. Tenho simpatia por essa manifestação da cidadania ativa, humanizada. No trabalho com dependentes químicos e com moradores de rua ou crianças em situação de vulnerabilidade esse tipo de ação parece mais eficaz. É uma espécie de parceria público-comunitária.

Durante muito tempo, a Previdência se manteve por um misto de Regime de Repartição (contribuição dos empregados e patrões), com participação apenas complementar dos recursos do orçamento público. Mas, o Poder Público sempre foi o fiador do sistema. O problema recente é que essa complementação é cada vez mais demandada. Adequações – Reformas! – precisam ser feitas.

O principal argumento para as adequações é a longevidade. De fato, em todo o mundo, as pessoas estão vivendo mais. É claro que no Brasil, e mesmo nos países ricos, há sonegação e corrupção. Mas a questão da longevidade é real e geral.

No Brasil atual, há a influência da crise econômica que gera desemprego e reduz as contribuições para o Regime de Repartição. Mas, há uma questão mais profunda, estrutural em todos os países: é a crise da sociedade do trabalho. Com o progresso tecnológico, a automação, a robotização, os postos de trabalho são reduzidos; é menor a “empregabilidade” dos jovens. De fato, precisa ser retomada a questão da redução da jornada de trabalho, para aumentar o número de empregos. No pós-Segunda Guerra de 1945 essa bandeira mobilizou os sindicatos e os partidos de esquerda.

Por outro lado, é preciso pensar outra forma de financiar a Previdência, definindo a contribuição não sobre a folha de salários, mas sobre o faturamento das empresas. Este debate, como o da redução da jornada de trabalho, está sendo deixado à margem no atual debate sobre a reforma da Previdência.

Por fim, em alguns países desenvolvidos, estão começando experiências de renda-cidadã, tanto como substituta ou complemento do seguro-desemprego e da aposentadoria.

Novos desafios estão postos. E os partidos de esquerda se quiserem ser alternativa de governo precisam ter propostas para o enfrentamento desses desafios. Sempre dialogando com as entidades sindicais, inclusive sobre as regras de transição sempre necessárias em questões previdenciárias.

 

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Antônio José Medeiros

Antônio José Medeiros

É sociólogo, professor aposentado da UFPI. Licenciado em Filosofia pela UFPI e Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP. Foi professor em escolas estaduais de nível médio do Piauí, em 1968 e 1971 e na UERJ e Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, em 1973 e 1974. Trabalhou como técnico sênior na CEPRO/SEPLAN-PI e coordenou o Setor de Educação do Polonordeste na SEDUC-PI, de 1978 a 1980. Professor concursado da UFPI, onde trabalhou de 1981 a 2007.

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