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Esperança Garcia, advogada sim

O texto original da carta de Esperança pode, sim, ser tomado como um ato de peticionamento, pois já em seu início, como faria um advogado em uma inicial

Alvaro Mota

Quinta - 09/03/2023 às 11:50



Foto: Divulgação Busto Esperança Garcia
Busto Esperança Garcia

Quando a OAB do Piauí, seguida por outras instituições, reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada do Estado – e do país – o fez com base no fato elementar de que a mulher escravizada, em uma carta ao governador da Capitania do Piauí, em 1770, peticionou por justiça.

A carta de Esperança Garcia, que se encontrava no Arquivo Público do Piauí, veio à luz em face de pesquisa do antropólogo Luiz Mott, paulista, mas atuando na Bahia. Mott tem um livro essencial para entender a formação do nosso Estado (“Piauí Colonial”, de 1985). No bojo de sua pesquisa para essa obra, emerge a carta da mulher escravizada, entregue ao governador da Capitania, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro.

O texto original da carta de Esperança pode, sim, ser tomado como um ato de peticionamento, pois já em seu início, como faria um advogado em uma inicial, qualifica-se diante da autoridade a quem vai requerer reparos a direitos: "Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada”.

Depois, num texto curto e precioso, ela relata o que considera injustiças cometidas por um agente público da Coroa: “Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal”.

Segue no relato de atos malfazejos ao relatar que, entre os males a que está submetida junto com sua família, “a primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei.”.

Veja-se que na carta, além do sentido de defesa própria e dos seus entes, Esperança García preconiza um tratamento mais humano à criança, seu filho. Mas ela faz mais, pois na segunda queixa ao govenador, reclama o direito à prática de sua fé cristã, informando estar ela e suas companheiras sem se confessar por três anos”, ou seja, ela buscou justiça também para além de sua família,

Finalmente, no ato que mais aproxima a carta de uma petição, Esperança García apela ao govenador, em nome de Deus e pelo valimento da autoridade real que ele exerce, para que “ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”.

Esperança García assina a carta como uma escrava do governador, o que de fato era, porque a fazenda onde estava e aquela de onde viera tinha sido alvo de expropriação aos jesuítas, tendo sido incorporadas ao Fisco Real, o Estado português. Era ela escrava do Estado, representado pelo governador da capitania, mas, tendo sido alfabetizada pelos jesuítas que eram seus donos anteriores, pôde peticionar por Justiça, cuja busca deve ser uma atitude de todos os tempos e de todas as pessoas.

Álvaro Fernando da Rocha Mota é advogado. Procurador do Estado. Ex-Presidente da OAB-PI. Mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela PUC-SP. Presidente do Instituto dos Advogados Piauienses. Presidente do CESA-PI.

Álvaro Mota

Álvaro Mota

É advogado, procurador do Estado e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Álvaro também é presidente do Instituto dos Advogados Piauienses.
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