Política

Juízes são demitidos nos EUA por trocarem mensagens com promotores

Nos Estados Unidos, país idolatrado por Sérgio Moro, juízes foram demitidos após trocarem mensagens com promotores. Situações caracterizam aquilo que os norte-americanos chamam de "ex parte communications"

Redacão

Domingo - 23/06/2019 às 07:00



Foto: CharlesKochInstitute Juízes são demitidos
Juízes são demitidos

O sistema de Justiça dos EUA também já se deparou com casos envolvendo troca de mensagens de texto entre promotores e juízes, durante julgamentos criminais. Essas situações caracterizam aquilo que os norte-americanos chamam de ex parte communications, em que a comunicação de uma das partes com o juiz, sem a presença e/ou conhecimento da outra, já pode ter a capacidade de afetar a percepção sobre a imparcialidade judicial e, consequentemente, a higidez dos julgamentos.

Há registro de que em pelo menos dois casos a situação foi grave e exigiu a adoção de medidas drásticas por parte dos órgãos de controle e das demais instâncias do sistema de Justiça.

Um exemplo foi a situação de desvio de conduta atribuído à juíza Ana Gardiner e ao promotor Howard Michael Scheinberg [1]. O caso aconteceu no condado de Broward, na Flórida, em 2007, e chocou a comunidade jurídica local. Gardiner e Scheinberg foram punidos depois que se descobriu que eles, secretamente, haviam trocado 949 telefonemas e 471 mensagens de texto, durante o julgamento de um processo em que ambos atuavam[2]. A conduta imprópria, caracterizada pelas conversações mantidas sem o conhecimento da defesa e dos jurados, teve lugar durante os cinco meses, durante a fase mais relevante do julgamento de Omar Loureiro — State v. Loureiro, No. 04-15633CF10A (Fla. 17th Cir. Ct.) —, um réu acusado de assassinato e para quem a Promotoria pleiteava e obteve a condenação à pena de morte. Conquanto Scheinberg e Gardiner tivessem negado que as conversas tivessem relação com o processo em andamento [3], a condenação de Loureiro foi anulada e lhe foi assegurado o direito a um novo julgamento [4].

Em razão do ocorrido, a juíza Gardiner teve que se demitir (resign). No acordo celebrado com a Judicial Qualifications Comission – JQC, ela se comprometeu a jamais voltar a concorrer ao cargo de juíza [5]. Além disso, ela foi processada pela Florida BAR Association e, por decisão da Suprema Corte do Estado da Flórida, perdeu definitivamente a licença para o exercício de atividades jurídicas (disbarred) [6]. Na decisão, proferida em 2014, a corte considerou Gardiner culpada por má conduta profissional e assentou que o comportamento da magistrada manchou todo o processo judicial. Invocando o precedente In re Adams, 932, So. 2d 1025, 1027 (Fla. 2006) — o tribunal considerou que a sua conduta desonesta comprometeu a percepção da comunidade jurídica e do público em geral de que os juízes são absolutamente imparciais quando julgam as causas. A corte ainda destacou o fato de que Gardiner, por estar presidindo o julgamento, tinha a grande responsabilidade de preservar a integridade do processo judicial e de assegurar ao réu um julgamento justo, circunstância que recomendava a aplicação de uma sanção rigorosa.

Já o promotor Scheinberg teve sua licença para a prática de atividades jurídicas suspensa por dois anos [7]. Na decisão, a Suprema Corte da Flórida deixou consignado que era evidente que as comunicações mantidas entre a juíza e o promotor não eram casuais ou protocolares, como costuma ser o tipo de comunicação que acontece quando um advogado e juiz se cruzam pelos corredores do fórum, e que, com a descoberta das extensas conversações, criou-se uma aparência de impropriedade em relação ao julgamento, servindo para comprometer a percepção acerca da imparcialidade judicial, no caso. Para o tribunal, ademais, a natureza grave da má conduta e o dano causado à administração da Justiça (pois as comunicações indevidas impuseram a anulação do primeiro julgamento do acusado) justificavam a aplicação de uma sanção severa.

Um outro exemplo foi o caso da juíza que ficou conhecida como “the texting judge” [8].

Elizabeth J. Coker era juíza no Condado de Polk, no Texas, até que foi forçada a se demitir [9], num acordo celebrado na Comissão Estadual de Conduta Judicial [10]. Na origem de tudo estava o fato de que, durante um julgamento criminal, a juíza Coker havia mandado uma mensagem de texto para o telefone celular da promotora assistente Kaycee L. Jones, orientando e sugerindo uma determinada linha de arguição a ser utilizada pelo Ministério Público.

O episódio ocorreu num processo (State v. David M. Reeves) em que o réu era acusado de agressão a um bebê. No momento em que a promotora Beverly Armstrong interrogava o acusado, a juíza Coker enviou uma mensagem de texto para a promotora assistente Kaycee Jones, na qual tentava ajudar e orientava a atuação da promotoria. Na mensagem, dizia a juíza à promotora: “O bebê defecou no acusado. Isto deixou ele furioso. Ele acabou de declarar que o bebê defecou nele. Se ele jogou o cachorro da cama por ter o cachorro urinado na cama, o que ele faria se o bebê tivesse defecado nele??????”.

A promotora Jones, que não conduzia a acusação naquele dia e que lá estava apenas assistindo ao julgamento, prontamente respondeu: “Boa questão”. E a juíza prosseguiu: “Conte a Beverly” [11], com o que pediu que a sugestão fosse repassada para a promotora que conduzia o interrogatório. Jones então usou um bloco de papel para transcrever a orientação da juíza e pediu que David Wells — um investigador da promotoria que estava sentado próximo — repassasse a anotação à promotora que fazia as perguntas. No topo do bilhete, Jones escreveu “Judge says” (“A juíza disse”), com o que pretendia mostrar à colega que se tratava de uma sugestão da própria juíza. O investigador Wells repassou a anotação para a promotora, mas antes leu a mensagem e percebeu do que se tratava.

A promotora Beverly Armstrong, por alguma razão, sequer chegou a formular a pergunta sugerida e tampouco utilizou a linha de raciocínio recomendada. Apesar do esforço da juíza Coker para ajudar a promotoria a obter um veredicto condenatório, o réu Reeves terminou absolvido da acusação que lhe faziam [12]. Ainda assim, a tentativa de ajudar a acusação através de mensagens de texto enviadas sem o conhecimento da defesa (ex parte text-message communications) custou caro para a magistrada.

Após o julgamento, o investigador Wells fez uma carta [13] reportando o caso de desvio ético aos seus superiores, tendo anexado ao documento uma cópia do bilhete que havia retido. O caso foi considerado um escândalo e teve enorme repercussão nos meios de comunicação locais [14]. E tanto a juíza Coker quanto a promotora Jones enfrentaram processos disciplinares.

Mesmo não tendo havido a condenação do réu naquele caso, a conduta da juíza foi considerada antiética e tendenciosa, a ponto de comprometer a imparcialidade que deve caracterizar a atuação judicial nos processos penais. Como destacou o juiz texano Gary Bellair, o episódio caracterizou uma indiscutível afronta ao sistema adversarial de justiça, que tem na sua base o princípio da imparcialidade judicial [15].

Depois que um parlamentar do Texas representou pela abertura de um processo de impeachment, a Comissão de Conduta Judicial abriu uma investigação que durou alguns meses e que só foi encerrada quando a juíza Coker concordou em se demitir. O acordo impôs a Coker a proibição de voltar a atuar como juíza no estado do Texas, ficando-lhe vedado se candidatar ou ser indicada para exercer qualquer tipo de função judicial no Texas, inclusive a celebração de casamentos [16].

Em razão da sua cumplicidade com a má conduta da juíza, a promotora Kaycee Jones também teve que responder por professional misconduct. No processo perante o Conselho Disciplinar do The Texas Bar Association, ela reconheceu o erro e se disse profundamente arrependida. Num documento enviado ao órgão, Jones escreveu: “Aquilo foi errado e eu tinha condição de saber. Meu chefe, o promotor Lee Hon, discutiu esse incidente comigo e nós concordamos que aquilo não devia ter acontecido e que não irá acontecer novamente”. E concluiu: “Agora compreendo plenamente a importância da imparcialidade de um juiz em um julgamento e minhas responsabilidades como advogada de não participar de tal conduta. Eu estava errada e nada disso acontecerá novamente” [17].

O processo contra Jones também terminou em acordo, com a aplicação das penalidades de censura pública e sanção pecuniária[18]. As reprimendas impostas a Jones foram mais leves (do que as impostas a Coker) graças ao entendimento de que sua participação foi menos grave: ela não era a promotora encarregada do caso; teria se limitado a encaminhar a mensagem da juíza; a pergunta sugerida sequer chegou a ser feita; e, por fim, como o réu foi absolvido, seu comportamento não teria contribuído para uma condenação injusta. Ainda assim, os fatos foram suficientemente graves para que se concluísse ter havido quebra da imparcialidade judicial, à medida que a juíza havia se aliado à promotoria para ajudar a obter a condenação do acusado[19].

Ainda que se possa discordar da (pouca) gravidade das sanções aplicadas e até mesmo do fato de os processos disciplinares também serem resolvidos por uma espécie de plea bargaining, o certo é que episódios como esses — na Justiça criminal dos Estados Unidos, ao menos — estão longe de serem compreendidos como algo que está dentro da normalidade.

A percepção de que é necessário anular eventuais condenações (obtidas em processos em que haja um comprometimento da condição de imparcialidade do juiz) e proporcionar aos réus novos julgamentos, por si só, já revela que o sistema de justiça não pode se conformar com essas situações de má conduta dos sujeitos processuais, especialmente quando restem afetados valores essenciais à Justiça.

Fonte: Pragmatismopolitico.com.br/

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