As inúmeras tragédias provocadas pela pandemia de coronavírus nos Estados Unidos poderiam ter sido —ao menos em parte— evitadas, se as ações do agora ex-presidente Donald Trump não tivessem reforçado desigualdades históricas e sido particularmente prejudiciais para as políticas de saúde pública.
A avaliação é da Comissão sobre Políticas Públicas e Saúde na Era Trump da revista The Lancet, uma das mais prestigiosas publicações científicas do mundo. Para os especialistas, o ex-presidente americano trouxe infortúnio para o seu próprio país e para todo o planeta.
Formado em abril de 2017, pouco depois de Trump assumir a Presidência dos EUA, o grupo fez uma análise dos quatro anos em que o republicano ocupou a Casa Branca e divulga, nesta quinta-feira (11), um relatório apontando o que considera os principais erros do último líder americano.
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A comissão é formada por um grupo de 33 especialistas americanos, britânicos e canadenses com ampla experiência em áreas que vão da medicina clínica e da epidemiologia ao direito, economia e política.
"O presidente [Joe] Biden deve enfrentar a pandemia de Covid-19 e suas consequências econômicas, além do legado corrosivo de Trump", diz um editorial da Lancet que acompanha o relatório. O texto afirma que a era Trump foi marcada por retrocessos que compõem "uma lista assustadora, mas crucial" em questões como cobertura universal de saúde, negação da ciência, racismo e desigualdade de renda.
Segundo o relatório, cerca de 40% das mais de 460 mil mortes atribuídas ao coronavírus nos EUA poderiam ter sido evitadas se a taxa de mortalidade no país se igualasse à média das outras seis nações (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Reino Unido) que formam o grupo das principais economias do mundo.
O número de óbitos por Covid-19 entre os americanos desde o início da pandemia também se assemelha à cifra que os especialistas chamam de uma "epidemia silenciosa de vidas encurtadas" —outras 461 mil mortes por ano consideradas desnecessárias, resultado de décadas de falhas políticas "dolorosamente expostas e agravadas" pela administração Trump.
"Em vez de galvanizar a população dos EUA para lutar contra a pandemia, o presidente Trump rejeitou publicamente sua ameaça (apesar de reconhecê-la em particular), desencorajou a ação à medida que a infecção se espalhou e evitou a cooperação internacional", afirmam os autores.
O relatório também aponta situações em que o republicano alegou que a Covid-19 era uma farsa, recusou-se a cumprir medidas baseadas em evidências, promoveu terapias sem comprovação médica (como o uso de hidroxicloroquina) e deu sugestões perigosas à população (caso da injeção de desinfetante "para matar o vírus").
Além disso, cortes orçamentários, alguns anteriores ao governo Trump, extinguiram cargos de cerca de 50 mil profissionais de saúde entre 2008 e 2016, um contingente de trabalhadores da linha de frente que poderia proporcionar aos EUA um cenário completamente diferente na resposta ao coronavírus.
"A pandemia explorou as desigualdades sociais e de saúde existentes, e em nenhum lugar isso é mais aparente do que nos EUA", afirma Richard Horton, editor-chefe da Lancet. Para ele, o coronavírus mostrou como o sistema de saúde americano tem sido inadequado para proteger a população.
O sucateamento da saúde pública, porém, tem um peso político muito anterior à pandemia, que remete ao neoliberalismo propagandeado pelo ex-presidente Ronald Reagan (1911-2004) nos anos 1980.
Os efeitos dessa ideologia que, segundo os autores, erodiu programas sociais, ajudaram a viabilizar a eleição de Trump em 2016. O relatório afirma que, durante sua campanha presidencial, o republicano explorou a raiva e a animosidade da população branca para desviar a atenção das políticas que geram o acúmulo de poder e riquezas entre os bilionários.
"Seus apelos racistas, anti-imigrantes e nacionalistas encontraram ressonância em algumas comunidades brancas de renda média e baixa que buscavam bodes expiatórios para suas perspectivas de vida em declínio, mesmo mantendo alguns privilégios negados às pessoas não brancas", diz a comissão.
Embora o time de especialistas da Lancet tenha se reunido para, a princípio, avaliar apenas as políticas de saúde pública, temas como racismo e relações sociais são recorrentes no relatório justamente por estarem diretamente ligados a vários aspectos da resposta do governo americano à pandemia.
O documento cita dados, por exemplo, que apontam que a Covid-19 aumentou a lacuna pré-existente entre a longevidade de pessoas brancas e negras nos EUA. Os índices de mortalidade em decorrência do coronavírus entre afro-americanos e latinos são até 3,6 vezes maiores que as taxas entre brancos. As estatísticas de hospitalizações devido a casos graves da doença também apresentam as mesmas disparidades.
Para os especialistas, a abordagem de Trump para responder à pandemia foi desdenhosa e remeteu a negligências históricas, como a omissão dos EUA em criar uma política de quarentenas e vacinas para mitigar surtos de varíola entre negros emancipados após a Guerra Civil americana (1861-1865).
O ex-presidente também é acusado de explorar a pandemia para tornar mais rigorosa sua política anti-imigração, usando a justificativa de proteger a saúde pública para fechar ainda mais o país, apesar de os EUA estarem no topo da lista de nações com mais casos e óbitos pela Covid-19.
O discurso xenofóbico de Trump, segundo o relatório, gerou medo e confusão na população de imigrantes, de modo que esses grupos tendem a evitar os serviços de saúde mesmo quanto têm acesso a eles. Na prática, isso dificulta os esforços de identificação e rastreamento de novas infecções pelo coronavírus.
“A resposta desastrosa e malfeita à pandemia deixou claro como as desigualdades raciais existentes, e de longa data, simplesmente não foram abordadas", afirma Mary Bassett, membro da comissão e pesquisadora da Universidade Harvard. "É hora de parar de dizer que essas lacunas evitáveis não podem ser eliminadas."
Mesmo em âmbito global, o relatório dos especialistas aponta que Trump teve um papel desestabilizador ao retirar o financiamento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em outras áreas, como na política ambiental, sua falta de compromisso com o multilateralismo também deu maus exemplos ao mundo.
Nesse aspecto, o documento cita a influência de Trump sobre o presidente do Brasil. De acordo com os autores, Jair Bolsonaro vem "adotando políticas que aceleram a destruição da Floresta Amazônica e irão acelerar as mudanças climáticas".
Além de Bolsonaro, são incluídos na categoria de influenciáveis os presidentes da Turquia e das Filipinas e os primeiros-ministros da Índia e da Hungria. "Infelizmente, as políticas de Trump não são uma aberração isolada dos EUA", conclui o relatório. "As agendas autoritárias estão se espalhando em todo o mundo, à medida que os políticos mobilizam pessoas inseguras com suas perspectivas de declínio para ir contra aqueles que estão abaixo delas em hierarquias raciais, religiosas ou sociais."
Fonte: Folha de São Paulo