
O desembargador Federal e candidato a ministro do Superior Tribunal de Justiça - STJ, Carlos Augusto Pires Brandão enviou um artigo ao portal Piauí Hoje falando da história e do legado da arqueóla arqueóloga Niède Guidon, que faleceu na madrugada desta quarta-feira (04.06) em sua casa, em São Raimundo Nonato, no Centro-Sul do Piauí.
No artigo o desembargador destaca que a morte da arqueóloga será uma data a ser lembrada e refeciada todos os anos pelo trabalho que ela fez pela humanidade. "Mulher, destemida, atravessou, ainda na juventude da vida, os mares d'águas e da imaginação, fazendo sentinelas em bibliotecas e laboratórios da Europa, preparando o seu exército para a cruzada que empreenderia nas Américas, abrindo, a partir de sofisticados modelos teóricos, novos caminhos que alcançariam os largos campos da verdade, de cuja beleza florescem as explicações mais genuínas sobre a vida humana na Terra", diz o magistrado.
Carlos Brandão lembra o início do trabalho de Niède Guidon em São Raimundo Nonato. "Nos idos de 1973, escavando abrigos rochosos da Serra da Capivara, no Sertão do Piauí, a Professora Niède reuniu evidências - fogueiras datadas (em torno de 50.000 anos), artefatos líticos - que desafiaram o paradigma “Clovis" (13.000 anos, única migração, através da Beríngia), reposicionando o debate sobre a chegada humana ao continente americano".
Ele também destaca o rigor metodológico de suas pesquisas, aferidas em laboratórios de datação na França e nos EUA, descerrou uma nova cronologia para a história das Américas. A ousadia das proposições abriu diversas frentes de batalha, incorporando dimensões interinstitucionais e interdisciplinares em suas estratégias. O Estado maior de seu exército hoje está abrigado em centro de excelência arqueológica, com sede em São Raimundo Nonato, onde ingressam pesquisadores de diversas universidades estrangeiras.
"Uma de suas tantas lutas em defesa da preservação acabou por nos aproximar. Tornamo-nos admiradores. Pois bem. Havia na Região de São Raimundo um arranjo econômico que explorava rochas calcárias, produzindo cal. Ocorre que nos fornos dessa indústria, podiam-se queimar também reminiscências arqueológicas", lembrar o desembargador.
Mais adiante o artigo do mesgistrado diz que a "professora Niède ganhou o coração de todos nós. Formou gerações. Participou intensamente de processos que transformaram as nossas vidas. Levantou as cortinas da burocracia para que a sociedade estivesse em cena. Transformou a dureza da Caatinga em grande ativo econômico e cultural. Merece todas as homenagens em sua despedida. Vibrante, com um olhar acadêmico para além de doutrinas, lutou incansavelmente para tornar a Região referência internacional, transformando a vida das pessoas, criando horizontes inimagináveis".
A seguir, na íntegra, o artigo do desembargador Carlos Augusto Pires Brandão.
"4 de junho. A partir de hoje, esta data deverá compor o calendário nacional.
Neste dia, a Professora Doutora Niède Guidon (1933-2025) despede-se dos corredores da vida, para ocupar, com destaque, os salões da memória cívica e científica.
Mulher, destemida, atravessou, ainda na juventude da vida, os mares d'águas e da imaginação, fazendo sentinelas em bibliotecas e laboratórios da Europa, preparando o seu exército para a cruzada que empreenderia nas Américas, abrindo, a partir de sofisticados modelos teóricos, novos caminhos que alcançariam os largos campos da verdade, de cuja beleza florescem as explicações mais genuínas sobre a vida humana na Terra.
Nos idos de 1973, escavando abrigos rochosos da Serra da Capivara, no Sertão do Piauí, a Professora Niède reuniu evidências - fogueiras datadas (em torno de 50.000 anos), artefatos líticos - que desafiaram o paradigma “Clovis" (13.000 anos, única migração, através da Beríngia), reposicionando o debate sobre a chegada humana ao continente americano.
O rigor metodológico de suas pesquisas, aferidas em laboratórios de datação na França e nos EUA, descerrou uma nova cronologia para a história das Américas. A ousadia das proposições abriu diversas frentes de batalha, incorporando dimensões interinstitucionais e interdisciplinares em suas estratégias. O Estado maior de seu exército hoje está abrigado em centro de excelência arqueológica, com sede em São Raimundo Nonato, onde ingressam pesquisadores de diversas universidades estrangeiras.
Uma de suas tantas lutas em defesa da preservação acabou por nos aproximar. Tornamo-nos admiradores. Pois bem. Havia na Região de São Raimundo um arranjo econômico que explorava rochas calcárias, produzindo cal. Ocorre que nos fornos dessa indústria, podiam-se queimar também reminiscências arqueológicas. O PH básico dessas rochas conservava esqueletos, artefatos, materiais orgânicos que guardavam os enigmas de civilizações, em sítios arqueológicos. Requerida a intervenção judicial, houve Liminar deferida na Justiça Federal, embargando a exploração mineral. Nessa época, na função de Juiz Diretor do Foro da Seção Judiciária do Piauí, acabei por iniciar visitas à Região, levando dezenas de instituições e outros juízes federais, abrindo diálogos para planejar e implantar novos arranjos produtivos para a Região, como a produção de mel, de cerâmica artesanal. Em poucos anos, esses produtos ganharam mercados e se tornaram fundamentais para a sustentabilidade social naquela Região do semiárido.
Nesses diálogos, nasceu uma admiração recíproca, que depois agregou o Deputado Federal Paes Landim ao meu coração. Nos horizontes abertos por essas relações interinstitucionais, desenvolveram-se miríades de ações em defesa da vida, do patrimônio natural, da memória nacional. Parques Nacionais, Áreas de Preservação Permanentes foram oficialmente declarados e reconhecidos. Chegamos a instalar juntos a Justiça Federal na Região. Vara Federal em São Raimundo Nonato, Posto Avançado da Justiça Federal em São João do Piauí.
A Professora Niède ganhou o coração de todos nós. Formou gerações. Participou intensamente de processos que transformaram as nossas vidas. Levantou as cortinas da burocracia para que a sociedade estivesse em cena. Transformou a dureza da Caatinga em grande ativo econômico e cultural. Merece todas as homenagens em sua despedida. Vibrante, com um olhar acadêmico para além de doutrinas, lutou incansavelmente para tornar a Região referência internacional, transformando a vida das pessoas, criando horizontes inimagináveis.
A Professora Niède venceu. Defendeu, de modo consciente e justificado, que ciência e conservação são indissociáveis. Defendeu a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara (1979), reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Instituiu a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), da qual derivaram o Museu do Homem Americano e, décadas depois, o Museu da Natureza, dotando a região de infraestrutura museológica exemplar para pesquisa, educação patrimonial e turismo sustentável.
Para além da arqueologia, articulou projetos sustentáveis de geração de renda, capacitando as comunidades, na produção de cerâmica artesanal que ganhou projeção internacional, na implantação de escolas rurais, na produção de mel, na defesa de políticas públicas de proteção ao bioma da caatinga. Integrou conservação ambiental, valorização cultural e promoção de dignidade às comunidades, dando vida prática a um modelo de desenvolvimento hoje estudado em fóruns internacionais de gestão de sítios patrimoniais.
O legado de Niède Guidon compõe agora a imaginação, as poesias inscritas nos paredões de arenito há milênios, hoje ressignificados e protegidos por sua ousadia acadêmica e sua militância cívica.
Os ventos que agora lhe levam embora o corpo e lhe fazem brilhar a alma na eternidade levantam também na nossa consciência cívica as armas em defesa de seu legado. A partir de hoje uma legião de brasileiros ingressa nas fileiras de defesa para preservar o parque que ela salvou em diversas tormentas, para apoiar as instituições que edificou, para prosseguir nos diálogos críticos que a Professora Niède incentivava entre ciência, sociedade e natureza.
Neste momento de saudade e de reflexão, estendemos nossa solidariedade a familiares, amigos, colaboradores, aos habitantes de São Raimundo Nonato, lembrando-lhes, e a mim mesmo, que a memória dos justos permanece para sempre, "em memoria eterna" (Salmo 112,6).
Viva a História, viva a Caatinga, viva o Piauí, viva o Nordeste. Viva! Vivas a esse imenso Brasil, que deve ser de todos nós.
Carlos Augusto Pires Brandão
Professor Doutor da UFPI/ Desembargador Federal do TRF1".