Arte e Cultura

Esperança Garcia e a miséria na Zona Norte de Teresina

Em 1770 Esperança Garcia denunciou através de petição ao governador da época os maus tratos que sofria como escrava

Valciãn Calixto

Sexta - 06/09/2019 às 19:35



Foto: Reprodução Esperança Garcia é considerada a primeira mulher advogada do Piauí
Esperança Garcia é considerada a primeira mulher advogada do Piauí

Há duas décadas era assinado o decreto que instituiu o 06 de Setembro como o Dia Estadual da Consciência Negra. Conforme consta no próprio documento, a comemoração é uma alusão ao “gesto heroico em que Esperança Garcia, escrava piauiense, denunciou através de uma petição endereçada ao Governador da Província do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, os maus tratos por ela sofridos, constituindo o mais antigo documento em defesa do povo negro, em solo piauiense, por um de seus representantes”.

“Era num tempo muito distante, onde não era comum os escravizados fazer peticionamento ao poder público, então essa foi a forma de Esperança Garcia lutar dentro do Estado que a escravizava, por seus direitos numa sociedade declaradamente desigual”, esclarece a professora de Direito Maria Sueli.

Por este feito, em 2017, 274 anos após a escritura do documento, a Ordem dos Advogados do Piauí, através da Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Brasil, concedeu título de primeira mulher advogada do Estado a Esperança Garcia. A cessão simbólica do título foi encabeçado por Sueli, que à época presidia a Comissão.

Diante o breve relato histórico exposto, a reportagem do PiauiHoje.com buscou conversar com agentes sociais que atuam no Movimento de Militância da Consciência Negra em Teresina para entender a importância de comemorar o 06 de Setembro, para saber o que precisa melhorar em termos de políticas de afirmação e incentivo a comunidade Negra no Piauí e como desenvolver e atingir a Consciência Negra.

Tornar-Se Negro

A afro empreendedora, umbandista e candomblecista Joelfa Farias (Fomotynha de Sangò), conta que a pessoa não nasce negra, mas se torna negra. Seu pensamento encontra sustentação na obra da professora e jornalista Neuza Santos Sousa, autora do livro Tornar-Se Negro. Na obra, Neuza conta que para se ter autonomia é preciso possuir um discurso sobre si mesmo e que seu livro viabiliza a construção de um discurso do negro sobre o negro. “Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro numa sociedade branca”, relata a autora.

Para Joelfa “esse tornar-se negro é um ato político e de resistência, nisso a importância do Dia Estadual da Consciência Negra é uma conquista que veio como forma de fortalecimento, a gente vê nessa atual gestão do nosso presidente o quanto estamos retrocedendo no tocante às políticas públicas e somos nós mulheres negros e homens negros que sentimos primeiro na pele as ações desses desgoverno”, afirma.

Mercado de Trabalho e Simpósio 

O advogado Edilson Sepúlveda, atual presidente da Comissão da Verdade Sobre A Escravidão da OAB-PI, revela que os negros são menos de 1% entre advogados de grandes escritórios de advocacia. “Defendo a integração e manutenção dos jovens negros no mercado de trabalho e a preparação das empresas para que isso se torne uma realidade”, comenta. Sepúlveda lembra que a Comissão que preside está organizando, ainda para 2019, o Simpósio Da Escravidão À Contemporaneidade: reflexões sobre a trajetória dos negros e de seus descendentes no Brasil.

Construção da Consciência Negra

A professora Maria Sueli explica que o processo de maturação de uma consciência negra é longo porque a inferiorização da pessoa negra faz parte da racionalidade moderna em sua ética, em sua filosofia, em sua moral e em sua religião, sendo um projeto europeu de dominação do mundo que chegou ao Brasil em 1500.

“É difícil enfrentar o racismo porque é uma questão religiosa, basta ver como se explica no Velho Testamento a inferiorização da África. Na história de Noé, depois do dilúvio ele se embriaga e um dos filhos o vê e faz escárnio, no outro dia Noé vai dividir o planeta, dá o continente africano para esse filho e diz que seus descendentes serão escravizados, imagina uma religião ter um fundamento desses, uma religião se alimentar de uma narrativa como essa. Ou se inventa uma outra religião em que as pessoas são iguais e a cor da pele não traz essa inferiorização ou isso nunca se enfrenta”, pondera.

Maria Lúcia, presidente do Centro de Defesa Ferreira de Sousa, baseado na região Norte de Teresina, conta que o dia 06 de Setembro é importante porque marca no calendário um processo doloroso do Brasil e do Piauí e lembra que os debates sobre Consciência Negra ainda não acontecem onde deveriam acontecer.

“Falta ao movimento se apropriar da nossa história, precisa de teoria, de História, de Filosofia, a gente pode ter visibilidade, mas é com a apropriação da nossa história que poderemos fazer uma releitura e assim construir uma nova”, fala.

Políticas de Marginalização

A presidente lembra que após a matança dos índios piauienses por Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista, e a abolição da Escravidão no Brasil, o Conselheiro Saraiva transfere a capital de Oeiras para Teresina. “Ele traz os antigos escravos, mas deixa no Centro as ‘pessoas de bem’ e na zona Norte a população negra”, conta.

“Ou seja, a classe dominante sabe o que está fazendo a anos, assim foi com o Conselheiro Saraiva e agora é com a família Silveira (sobrenome do prefeito Firmino Filho), que se perpetua a anos no poder e sempre usando os movimentos populares como capital político”, rechaça.

“Nossa população vem sofrendo desde sempre, por isso é necessário da nossa parte de agentes transformadores uma leitura crítica, em Teresina nos anos 70 sofremos com as queimadas (menção ao período em que as casas de moradores da região Norte eram incendiadas na calada da noite, o que, inclusive foi retratado no clássico livro Palha de Arroz, do autor piauiense Fontes Ibiapina), hoje sofremos com o projeto de segurança Vila Bairro, que é a mesma política do antigo Capitão do Mato, ou seja, a polícia faz batidas em Casas de Reggae e bares da nossa região, criminalizando e humilhando a população negra, as luzes da praça são cortadas para que os jovens não façam Batalhas de Rima, isso adoece e mata nossa população, por isso que se hoje Esperança Garcia fosse viva e morasse na zona Norte ela escreveria para o governador da mesma forma”, denuncia.

Nascimento da Consciência Negra

Nota-se uma convergência no discurso adotado tanto pela professora Sueli como pela militante Maria Lúcia no tocante ao Conhecimento e Criticidade como ferramenta de empoderamento. “O enfrentamento dessa inferiorização passa por levar esses assuntos pras salas de aula, pras universidades, pros livros e os livros sendo lidos, pros museus, contando outra história, quando a gente fez o projeto Esperança Garcia, a gente fez nessa perspectiva de trazer uma heroína pra habitar o imaginário das pessoas, pois é preciso que as pessoas negras tenham seus heróis e heroínas como motivo de orgulho, é aí que começa a nascer a Consciência Negra, é criar outra memória coletiva das pessoas negras, apresentando o povo negro como lutador pra ficar vivo, lutador por sua liberdade e lutador ainda hoje, é esse tipo de ação que vai contribuir com uma consciência coletiva, que seja uma consciência negra, porque até hoje essa coletiva é só branca”, conclui Sueli.

Espaço de Interação

Há dois anos o Governo do Estado reformou e ampliou o antigo Memorial Zumbi dos Palmares e o rebatizou com o nome de Memorial Esperança Garcia, perdendo a oportunidade de criar e manter na capital dois núcleos destinados às movimentações da comunidade negra na capital.

Ainda assim, o espaço existe e sua importância é ressaltada pelo atual Coordenadora, Antônia Aguiar. “Aqui damos visibilidade à cultura negra através das atividades como Café com Conversa (na segunda quinta-feira do mês), Poesia Negra na Sexta (sempre na última sexta-feira do mês), Observatório Quilombo, um encontro que acontece duas vezes no mês, temos os grupos de Capoeira, que fazem suas práticas aqui no espaço, grupos de dança, grupos de teatro, temos uma biblioteca voltada para a temática racial, sala de informática, sala de exposição, sala de cinema, sala para reunião, nós temos auditório multi-uso”, informa.

 Programação do Memorial Esperança Garcia

Segue abaixo o modelo original da carta e sua versão atualizada:

Carta original:

“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Carta traduzida:

“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”


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