A relação entre arte, política e mídia é historicamente complexa e, no Brasil, frequentemente ganha contornos dramáticos. O episódio recente envolvendo o cantor sertanejo bolsonarista Zezé Di Camargo e o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) serve como um microcosmo dessa tensão e reacende debates fundamentais sobre a censura, liberdade de expressão, autonomia editorial e os limites do ativismo político de artistas.
A controvérsia recomeçou quando Zezé Di Camargo, homem publicamente alinhado ao bolsonarismo, exigiu, por meio de um vídeo nas redes sociais, o cancelamento de seu próprio especial natalino, "Natal É o Amor", programado para ser exibido na emissora. O motivo? Sua profunda discordância com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes no lançamento do novo canal de notícias do SBT, o SBT News.
O pedido do sertanejo bolsonarista, que visava retirar do ar um conteúdo já gravado e que envolvia o trabalho de outros profissionais, foi amplamente interpretado como uma tentativa de censura indireta, usando sua obra como moeda de barganha para protestar contra a linha editorial que a emissora sinalizava adotar.
A reação do SBT foi rápida e emblemática. Após uma breve avaliação interna, a emissora anunciou a decisão de não exibir o especial. Em uma carta aberta assinada por sua presidente, Daniela Abravanel Beyruti, o canal posicionou-se sem citar nominalmente o artista, mas defendendo com clareza seus princípios editoriais.
O texto enfatizou o compromisso do SBT News com um jornalismo "confiável, plural e apartidário", que busca refletir a diversidade institucional do país. A resposta da emissora foi, acima de tudo, uma afirmação de sua autonomia: a programação e as escolhas editoriais são prerrogativa da empresa, não podendo ser ditadas por pressões externas, mesmo quando partem de um de seus próprios talentos.
O caso vai além da simples cancelamento de um programa. Ele revela fissuras profundas no tecido social brasileiro. Para uma parcela do público, Zezé agiu com coerência, utilizando sua plataforma para um boicote político legítimo. Para outra, seu gesto foi autoritário, uma tentativa de silenciar, por vias transversas, a exposição de figuras políticas com as quais discorda, o que configura demonstração de uma mentalidade intolerância política e censória. A polarização que dominou as redes sociais após o fato é um reflexo da dificuldade do diálogo em um ambiente onde posições políticas são frequentemente tratadas como identidades inegociáveis.
Este episódio também lança luz sobre a transformação do SBT. Ao receber autoridades dos três Poderes em um evento e reforçar um discurso de pluralidade e isenção, a emissora sinaliza um distanciamento da imagem de refúgio bolsonarista que lhe foi atribuída durante o governo anterior. A decisão de priorizar seu projeto jornalístico de longo prazo sobre um especial de alto apelo popular, ainda que temporariamente, é um indicativo forte dessa nova postura.
Por fim, a situação impõe uma reflexão sobre o papel do artista em uma democracia. Até que ponto um profissional do entretenimento pode condicionar a veiculação de seu trabalho a alinhamentos políticos da empresa contratante? Onde termina a liberdade de expressão do artista e começa a interferência indevida na linha editorial de um veículo de comunicação?
O caso Zezé/SBT não oferece respostas fáceis, mas evidencia que, em um país ainda em processo de amadurecimento democrático, a fronteira entre protesto e censura permanece um terreno constantemente desafiador. A decisão final do SBT, neste contexto, ressoa como uma defesa, ainda que custosa, do princípio de que a programação da TV aberta não pode ser refém de vetos políticos individuais ou de grupos econômicos.

Luiz Brandão
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