O isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus nos proporcionou uma nova experiência: o uso constante e quase ininterrupto do mundo digital. Entre as crianças e adolescentes, o desafio inclui usar as telas para o desempenho das tarefas escolares, aulas virtuais, pesquisas, além do uso afetivo dos dispositivos eletrônicos para o contato com familiares e amigos e, ainda, como opção de entretenimento e lazer. Com todas essas novas necessidades, o tempo de uso de tela entre crianças e adolescentes disparou no último ano, alarmando pais e especialistas.
“Antes da pandemia, minhas filhas ficavam cerca de 2 horas por dia conectadas. Hoje, são quase 10 horas”, pontua Cristiane Pavan. A gerente de negócios, de 40 anos, é mãe de Yasmin, 13, e Manu, 9, que tinham aulas de 8h às 15h30 diariamente e duas vezes por semana praticavam esportes até às 19h. “Não conseguimos adaptar os esportes à rotina online”, conta Yasmin. “Passamos a fazer muitas chamadas de vídeo para falar com os amigos.”
Controlar o tempo de tela não é uma tarefa fácil, já que o brasileiro gosta de ficar conectado. O relatório Digital in 2020, realizado pelo We Are Social e Hootsuite, aponta que, no Brasil, o tempo de uso de internet em 2020 foi de 9h17 (a terceira posição num ranking de 42 países, atrás apenas das Filipinas e da África do Sul). O tempo que passamos online é bem superior à média global, que é de 6h43. “Em um dia de 24 horas, gastar 10 horas interagindo com as telas é muito”, acredita Kelli Angelini, gerente jurídico do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR).
Vale destacar que 89% da população entre 9 e 17 anos já era usuária de internet em 2019, quando a pandemia ainda não havia se instalado, de acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2019. “Os pais, as famílias precisam ter em mente que o tempo gasto com atividades de educação e para o convívio (interação com outras pessoas) também são contados como tempo de tela. É preciso proporcionar também outras atividades fora das telas”, recomenda Kelli.
Os especialistas consultados pelo Estadão afirmam que o excesso de exposição aos dispositivos eletrônicos pode desencadear uma série de problemas que vão desde má postura, obesidade, alternância de humor e ansiedade, até problemas de miopia, audição, crescimento e dependência tecnológica.
Apesar de as meninas terem se adaptado facilmente à rotina online, os pais da Yasmin e da Manu notaram que a falta de exercícios físicos e o excesso de exposição à luminosidade das telas prejudicaram as filhas. “Elas passaram a ter dificuldade para dormir, ficaram mais irritadas e ansiosas”, conta Diógenes Pavan.
Ana Luiza Vilar Bassalobre, de 13 anos, relata que o seu maior desafio durante a pandemia foi estudar. “Quando eu tentava me concentrar nas aulas, me distraía no celular. Precisei redobrar o esforço, pois na escola não tem esse tipo de distração", conta. Além das atividades esolares, ela passou a fazer online aulas de inglês e de artes gráficas e aderiu aos jogos virtuais como forma de socializar. Mas, mesmo com mais dificuldade para o aprendizado, a estudante não deve voltar às aulas presenciais tão cedo. "A minha mãe, Vera, de 76 anos, mora com a gente. O risco é muito grande ainda", explica a mãe de Ana Luiza, Flavia Vilar Bassalobre.
“Tirar o celular era uma forma de controle, como quando ela passava muito tempo online ou não tirava boas notas”, explica a empresária Fabiana Moura, mãe da Beatriz Hempel, de 13 anos. “Hoje, isso é impossível, não há possibilidade de restringir o uso do eletrônico agora”, lamenta Fabiana, calculando que o tempo de tela da filha aumentou em 80% na pandemia.
Porcentual semelhante ao percebido pela mãe de Arthur, também de 13 anos. “Ele teve que aprender muitas ferramentas para as atividades escolares e também para interagir com os amigos”, explica sua mãe, Edi Souza. Ela conta ainda que toda a família passou a usar mais os aplicativos e as facilidades que o mundo virtual oferece. Mas, para o ano letivo que vai começar em breve, a família de Arthur optou pelo formato híbrido (em que o aluno faz aulas presenciais e virtuais alternadamente). "Eu sou mais de brincar na rua, gosto de jogar bola sinto falta dos meus amigos", conta o estudante.
Evelyn Eisenstein, especialista do Grupo de Trabalho sobre Saúde na Era Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), chama a atenção para o fato de que as “crianças não são miniadultos”. “O cérebro delas está em desenvolvimento e é afetado pelo efeito das telas. Soma-se a isso a pandemia, com crianças e adolescentes ficando em casa, os pais de home office.”
Como consequência, Evelyn destaca, a tela é usada como entretenimento e sem supervisão. “É importante lembrar que eles são seres de cérebro em desenvolvimento e precisam de tempos: para dormir, se alimentar, fazer exercícios, brincar. As crianças precisam ter momentos de distração ativa, ou seja, na autonomia do movimento dela e não passiva olhando uma tela”, recomenda.
Cristiano Nabuco, coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do IPq - Instituto de Psiquiatria da USP, explica que "Quando estamos lendo um livro, por exemplo, o tempo que a memória precisa para ser recrutada é pessoal, varia para cada individuo. Para consolidar essa informação [que estamos lendo], tomamos o nosso tempo (batemos o lápis na boca, mordemos o dedo...). Quando temos, primordialmente, uma interação digital, esse tempo cerebral não é respeitado. Isso faz com que exista sobrecarga na tensão, e na medida que há sobrecarga, perdemos a capacidade de reter a informação. Se não houver equilíbrio entre o online e o offline, cria-se o que nós chamamos de transbordamento de informação", explica.
Para o psicólogo e pesquisador, quando pegamos todo o conteúdo que era offline e transportamos, de uma maneira rápida, por conta das necessidades, para a vida digital, há uma perda de atenção. “Não conseguimos reter a informação no nível e na velocidade em que é apresentada, o que começa a gerar a perda da memória de longo prazo”, explica Nabuco. “Isso faz com que essas crianças e adolescentes percam a capacidade de associacionismo. Ficam mais ‘rasas’, a primeira capacidade sacrificada é a criatividade, eles perdem a habilidade de conhecimento profundo, não têm tanta capacidade de interpretar texto, perdem a habilidade de reter as informações de forma adequada para o cérebro. Ou seja, se a informação não for rápida, fracionada e telegrafada, não desperta interesse e, com isso, cria-se um nivelamento bem negativo.”
Andréa Jotta, psicóloga e pesquisadora, do Laboratório de Psicologia e Tecnologias de Informação e Comunicação da PUC-SP, explica que o ‘detox’ digital deverá acontecer de forma gradual. “Temos um período pela frente de readequação ao mundo presencial e isso tem de ser feito com paciência e acolhimento.”
"Quando o uso da tecnologia for uma escolha (e não uma imposição, como é atualmente), qual vai ser a escolha da criança? O mundo presencial terá de ser muito atrativo para ela", diz. E os pais terão de participar ativamente dessa transição. "Essas gerações já nasceram conectadas. Então, não adianta comparar com a infância dos pais - que tiveram uma realidade diferente. Ensinar a elas as opções de brincadeiras físicas também é uma tarefa da família", pontua.
Para que essas crianças e adolescentes voltem a se interessar pelas atividades presenciais e físicas, Andréa explica que os pais terão de incentivar oferecendo opções de lazer, de divertimento e, sobretudo, "terão de dar o exemplo", recorda. "Se os pais não aplicam as condutas no dia a dia, não podem cobrá-las dos filhos".
Fonte: Estadão