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Como o Piauí driblou a União e demarcou sua primeira terra indígena

Foi necessária a mobilização da sociedade, legislativo, acadêmicos e dos próprios kariri

Sexta - 11/09/2020 às 12:33



Foto: Divulgação/Ccom A assembleia dos kariri com servidores estaduais do Interpi foi importante para fazer o processo andar
A assembleia dos kariri com servidores estaduais do Interpi foi importante para fazer o processo andar

"Enquanto eu for presidente não tem demarcação de terra indígena". Assim afirmou o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), em entrevista no dia 16 de agosto de 2019, dando clareza inquestionável a uma disposição que o chefe do Executivo jamais escondeu: a de não demarcar jamais novos territórios indígenas em solo brasileiro. Mas, graças a um esforço integrado de sociedade civil, comunidades originárias e entidades públicas estaduais, o Estado do Piauí conseguiu oficializar seu primeiro território indígena demarcado da história. 

A situação era delicada. De acordo o Decreto nº 1775/96 - que está em plena vigência - compete à União encabeçar o processo de demarcação de terras indígenas. Pior para o Piauí e suas comunidades indígenas. A unidade federativa não conta (ou não contava) com um só território indígena, 520 anos depois do início de colonização do território por parte dos povos europeus.

Para alterar esta realidade sem ter que esperar a saída de Bolsonaro da presidência, o governo e a sociedade do Piauí se engajaram em um processo de criação de nova legislação estadual, levantamento de dados demográficos e antropológicos e estabelecimento de um um grupo de trabalho envolvendo lideranças de comunidades indígenas, pesquisadores da Universidade Federal do Piauí e servidores estaduais do Instituto de Terras do Piauí (Interpi). 

Foi assim que se viabilizou a primeira demarcação de terra indígena no Estado, de propriedade e uso da Comunidade Serra Grande dos kariri, no município de Queimada Nova, a 522 quilômetros de Teresina, quer fosse o desejo de Jair Bolsonaro ou não.

O processo até a garantia do direito

O primeiro passo para se demarcar o território foi garantir que o Estado do Piauí teria a obrigação e os meios para fazê-lo. Para tanto, foi desenhada e aprovada no ano passado a Lei Estadual de Regularização Fundiária (nº 7.294/2019), após dois anos de debate e aprimoramentos do texto legal realizados por grupos técnicos do governo estadual e entidades da sociedade civil.

Basicamente, a norma determina que sejam destinadas às comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, as terras públicas e devolutas estaduais por elas ocupadas coletivamente. 

De posse dessa diretriz legal, o Interpi e seus parceiros da sociedade civil passaram a mapear comunidades e territórios que poderiam se enquadrar nos requisitos para a demarcação. A comunidade dos índígenas kariri em Queimada Nova, de cerca de 35 famílias vivendo da agricultura e da pecuária de subsistência, em terras devolutas do sudoeste do Estado, se encaixava nos requisitos.

Faltava, então, conferir ao Poder Executivo estadual a competência legal e a capacidade técnica para reconhecer as comunidades indígenas e seus direitos originários. Isso foi possível por meio do trabalho do Interpi e de uma nova lei aprovada na Assembleia Legislativa do Piauí (7.389/2020), publicada no Diário Oficial do Estado no dia 27 de agosto deste ano.

A nova norma - fazendo uso dos dados antropológicos colhidos pelo corpo técnico estadual - reconhece formal e expressamente a existência de povos indígenas nos limites de sua extensão territorial do Estado do Piauí. Com tal reconhecimento e a determinação da lei de 2019, de que o Estado deve demarcar terras devolutas ocupadas por comunidades originais, o Piauí conseguiu fazer sua primeira demarcação, em uma área de 2.114 hectares.

“Estamos, agora, titulando as terras para essa comunidade, que ocupa o local há séculos. A situação já está resolvida, faremos nos próximos dias uma solenidade, mas o direito à terra demarcada já está garantido”, comemora Chico Lucas, diretor do Interpi.

“A gente sabe que a União, hoje, está em um processo de esvaziamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Então, o Estado assume essa responsabilidade. Mas não queremos excluir a Funai do processo, ela é bem vinda para vir e complementar o trabalho”, ressalta o diretor do órgão estadual, ciente das dimensões do trabalho que ainda existe pela frente.

O trabalho é garantir estrutura mínima para a atividade de plantio e criação de pequenos rebanhos da comunidade. A área demarcada se encontra em pleno sertão nordestino, e a falta de água é o principal e mais urgente problema enfrentado pelos kariris. Atualmente, no período de chuvas, para beber, contam com as águas dos céus que são armazenadas em cisternas, construídas em 2005 no âmbito dos programas então mantidos pelo governo federal.

Quem explica bem a questão é a cacique Francisca, de 52 anos, primeira líder mulher de sua comunidade. Ela participou de todo o processo anterior á demarcação, reconhece a importância do que já foi feito, mas destaca o que de mais importante ainda precisa ser tratado:

“São muito distantes os acessos à água, para plantar, dar aos animais. Temos que comprar de caminhão pipa, ou esperar a Defesa Civil trazer. O que está no nosso sonho, com mais urgência, é o acesso à água. É a falta de água que mais distancia nossas famílias, que faz muitos se mudarem da nossa terra”, resume a cacique.

Obras e políticas públicas para garantir as condições mínimas de vida dos kariri dentro de suas terras, agora, são atribuições do poder público, de qualquer uma e de todas as esferas. A demarcação do primeiro território indígena no Piauí é uma vitória de todos aqueles que prezam pelos direitos dos povos originários, tanto mais no contexto político atual do país.

Fonte: BRASIL DE FATO

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