Proa & Prosa

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Marília do povo

Popular? Qual o sentido de ser popular?

Fonseca Neto

Sexta - 12/11/2021 às 06:05



Foto: Itambé Agora Marília Mendonça
Marília Mendonça

Num grupo de zap com membros da Associação Nacional de História, seção Piauí, Anpuh-PI, com calor, rolou e rendeu uma conversa sobre Marília Mendonça, na hora de sua partida. Conversa séria.

Popular? Qual o sentido de ser popular?

Núcleo da questão: o desdém de alguns intelectuais em relação aos chamados cantores das multidões, como são tratados no Brasil diversos artistas que movem e embalam o povo de norte a sul. Intelectuais aqui referidos aqueles tidos como “de esquerda”, diga-se, cujas obras sugerem a compreensão das massas populares no movimento da História.

Um debatedor até lembrou de intelectuais brasileiros que vão estudar lá para as bandas de Paris a pobreza de milhões de brasileiros... E aqui dentro do triste trópico – aliás, expressão atribuída a um belgo-francês – manifestam indiferença com a pobreza de milhões e têm asco da estética do popular real, das massas. Mormente quanto ao que move a musicalidade.

Fui infanto-adolescente pela década de 1960 e tive a oportunidade de conhecer um padre culto que gostava de música “clássica” e me pedia para prestar atenção naquelas gravações que ouvia, geralmente o fazendo enquanto lia. Logo achei aquilo muito bonito. Aliás, se não me engano, foi a primeira vez que ouvi alguém palavrar o termo Estética. Uma coleção de grandes LPS de orquestras com sinfonias e óperas de Beethovem, Bach, Mozart – “Música Para Ouvir e Sonhar”. Música linda e um bom livro. Eu aos 12, 13 e 14 anos.

Na mesma época, morando vizinho a um boêmio irreverente, passava o dia tocando Waldick, Silvinho e Orlando Silva, o cantor das multidões. E a cidade toda vivia os finais de semana dançando matinê, vesperal e festas de latada, ouvindo sanfona de Luiz Gonzaga, Trio Nordestino. Descobri-me gostando, e muito, de todas essas “músicas”. E com a banda da PMPI, que tocava por lá, no Festejo, os dobrados me ganharam até hoje. A chamada música de sopro tenho por algo muito especial. Os herméticos diriam que eu sou eclético, que “não entendo” de música. E é para se entender?

Logo por ali comecei a ouvir e ver dizer um fraseado que falava em Música Popular Brasileira, MPB, expressão associada aos festivas da canção “popular”, comuns naqueles anos iniciais da Ditadura. MPB? Logo também notei que o Roberto Carlos não era considerado como “música popular”. E nem o próprio Gonzagão. MPB marcava uma turma pouco conhecida dos milhões, aconchegada aos círculos de gente-papo-cabeça. Sim, de gente “intelectualizada”. Naquele contexto, uma certa classe média, em geral, denunciadora do Regime.

O Brasilão massivo cantando e dançando bolero de Waldick, Agnaldo e sua voz potente, baladões, forrós e baiões, marchinha de Carnaval, samba rente à raiz. Nada disso, além da Jovem Guarda, era considerado “popular” naquele sentido de MPB.

Mais umas décadas, a indústria fonográfica faz disparar o que se passaria a chamar de “sertanejo”. A rigor, música de outros sertões, que não os nossos, aqui do Norte brasileiro. Massificou-se o canto das duplas. Milhões acorrendo... O próprio Carnaval, sobretudo o toque-frevo, abaianado, ganhou o povão. Mas não é MPB.

Então o que é popular? Para além da rotulação, popular é arte e até artefato: é o que se instala no e estetiza o coração pulsante das pessoas, contagiando milhões em trocas sinérgicas: isto. O que desconfiava, hoje eu sei: MPB é um rótulo de distinção com viés de classe social.

E a Marília, fenômeno e fazendo dançar milhões? “Intelectuais” resmungam: música fraca, sem refino, arte, alienante. Um disse, para marcar seu lugar em face da referida distinção: “nunca tinha ouvido falar” dela. Deve-se educar as massas para ouvir Villa-Lobos contra o baião? Não, o que se deve é respeitar a estética das massas em favor delas. Manipuladas? E tem mais manipulados que certos “intelectuais”?  

Marília ganhou o coração de milhões com sua linda voz. Poucas alcançaram esse lugar forte e especial. Pronto. Abaixo toda forma de preconceito.        

 

Fonseca Neto, historiador, Cadeira 1, Academia Piauiense de Letras.  

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FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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