Foto: Divulgação
Eurides
Não é novidade que todos lembrem e cantem ardentemente a saudade da primeira professora. Parafraseando o poeta famoso, “também vou cantar a minha”.
Nasci num burgo do Maranhão sertanejo, que a poética do hino diz ser – e é – recanto lindo do Brasil: Passagem Franca. Um ponto do globo cuja contemplação da paisagem logo confirma a lindeza e revela o pórtico do sacrário amazônico. Palmas de muitas espécies, aureolada de buritizal de brejo e também de pau d’arco de toda cor, sucupiras e angicos e... E habitado por gente comum, brasileiros essenciais. Imaginem os bons cheiros desses ares naturais... Mas também do cheiro cultural do mel quente no ar na época das moagens.
Pois foi nesse paraíso de natureza e cultura que nasceu Eurides, na década de 1920. Eurides, nos registros da civilidade, filha de Emerenciana de Sousa Coelho e Antonio Borges de Araújo, estes também filhos legítimos da Freguesia. Por oportuno, Merença e Antonio, pais também de Anastácio, Dina, Iolanda, João, e Manoel Borges de Araújo. Sujeitos de uma condição sociocultural medianamente acima da média do povo do lugar, eles souberam alfabetizar todos os filhos e encaminhá-los ao melhor labor humano que o tempo e o meio permitiram.
Eurides e Iolanda, já no pleno domínio das letras – era comum à época –, logo foram designadas pela municipalidade para as classes de alfabetização e do ensino primário.
É do ano de 1960 a minha sala de Jardim de Infância com “Dona Eurides” – como era o costume se tratar com ela – e outras professoras. Nossa cidade pequena tinha escola mas não tinha prédio escolar próprio, alugava-se salas particulares. E nossa escola funcionava numa saleta alugada da indústria desativada de Olavo Araújo e Dona Bibiana. Eu já conhecia as letras do alfabeto ensinado por minha mãe e com Eurides aprendi a soletrar. E soletrando, escrever as primeiras palavras.
Desse primeiro contato com uma turma escolar lembro muito bem da ambiência e da inquietude geral e da dificuldade de Dona Eurides controlar a criançada. O teto da sala era muito baixo e eram duas as janelas, uma para o quintal da própria escola e outra para o quintal de Dona Maria do Raimundo Cândida, com uma pitangueira o tempo todo carregada, incitando os “alunos” a varar a cerca e apanhá-las.
Lembro bem do rosto de Eurides, terna. Rosto dos mais conhecidos da cidade, moradora em casa perto da escola e casada com um chefe de polícia local. Também lembro vivamente das “classes” mais “adiantadas”, vizinhas da nossa, do ABC, e do incômodo de Eurides e de todo mundo com o vozerio estridente das donas Cacilda e Teresinha do Ataliba, com potentes palmatórias disciplinadoras.
Esposa de policial estadual, Eurides mudou-se para São Luís ainda no final da década de 60 e lá criou seus filhos e filhas e alcançou netos. Entregou sua vida de nove décadas às brisas leves da Renascença e aos memoriais dignos de Upaon-açu. E na antiga capital maranhoa deu-se ao silêncio neste dia 6 de novembro. Aportou no Infinito eternal, creio que tranquila, ainda soantes pelas vizinhanças cósmicas, os clarins e trombetas insones do festim angélico da entrada de Marília. A propósito, Eurides, inspiração na ninfa, mítica, deu à música e à poesia da gleba o bom Mano Borges, orgulho da conterraneidade. Viva Euterpe!
Na pessoa de Maria da Guia Porto Cardoso, minha colega dessa turma, dedico esta recordação aos demais colegas do ABC de 1960. E em nome de todos, com esta nota à sua memória, aplaudir a nossa mestra das primeiras letras: luz e tempero cultural da vida que nos sorriu no tempo que veio.
Aleluia!
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Fonseca Neto
FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.