Proa & Prosa

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Estatutos do Homem

Estamos três décadas e meia depois desse acontecimento político, e, há 4 dias, o poeta saiu de cena: tornou-se uma porção de pó, dada ao sopro cósmico. Diria Nauro, o pó aos “pósteros”.

Fonseca Neto

Quarta - 19/01/2022 às 15:17



Foto: Divulgação Poeta Thiago de Melo
Poeta Thiago de Melo

O título é de um poema radical que Thiago de Melo declamou à rampa do Congresso Nacional no dia da promulgação da Carta de 1988. Minutos depois, a autoridade promulgante, apelidou o documento de “constituição cidadã”. Reinação retórica.

Estamos três décadas e meia depois desse acontecimento político, e, há 4 dias, o poeta saiu de cena: tornou-se uma porção de pó, dada ao sopro cósmico. Diria Nauro, o pó aos “pósteros”.

A Carta, esperança de muitos naquele 5 de outubro, agora se sabe que no essencial não passa de “carta de intenção”, remendada para despojá-la de “intenção” de mudança que constitucionalizaria os desconstitucionalizados.

Ficam os Estatutos, matéria poética. Imaginação utópica. Na hora que a brisa amazônica leva o poeta, o país em que nasceu faz a antirrima de seu canto esperançoso.

“Art. 1º Fica decretado que agora vale a verdade / agora vale a vida, / e de mãos dadas / marcharemos todos pela vida verdadeira”. Contra a Carta, agora o Brasil tem um regime de apaixonados da dor, ódio, mentira; da morte, propriamente.

 “Art. 3º Fica decretado que, a partir deste instante, ´/ [...] as janelas devem permanecer abertas, o dia inteiro, / abertas para o verde onde cresce a esperança.” Contra a Carta, as janelas se fecharam com medo da morte que grassa pelas ruas; o verde, bolsos bandidos cinzentam tocando fogo na Natureza-mãe.

“Art. IV. Parágrafo único – O homem, confiará no homem / como um menino confia em outro menino”. “... a verdade passará a ser servida antes da sobremesa” (art. V). Agora, contra a Carta, o Brasil oficializa o reinado da mentira, da manipulação, do crime de lesa-dignidade, da negação da história. A má-fé como método de reinar.

“Art. VI Fica estabelecido , durante dez séculos, / a prática sonhada pelo profeta Isaías, / e o lobo e o cordeiro pastarão juntos / e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora”.  Agora, contra a Carta, no regime da morte; a fome que antecipa a morte voltou como método exterminador.

“Art. VII Por decreto irrevogável fica estabelecido / o reinado permanente da justiça e da claridade, /...”. Agora, apagando a Carta, o regime bolsomorista navega rumo a escuridão, verdadeira reinação da inJustiça.

“Art. IX Fica permitido que o pão de cada dia / tenha no homem o sinal de seu suor. / Mas que sobretudo tenha / sempre o quente sabor da ternura”. Agora, contra a Carta, “pós-moderna”, a volta da escravidão e falar em ternura no regime que ama nazi é acender bombas de ódio.

“Art. XIII Fica decretado que o dinheiro / não poderá nunca mais comprar / o sol das manhãs vindouras.”.  Contra a Carta, antes e agora, o dinheiro desiguala, jugula, corrompe. Compra as manhãs – e as tardes e noites – de milhões que têm assim suas vidas roubadas. Não cria, destrói o viver fraterno.

“Artigo Final – fica proibido o uso da palavra liberdade / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo e um rio, / e sua morada será sempre / o coração do homem”. Proclamada na Carta do art. 5º e negada na Carta restante, a liberdade é para os que estão acima da Carta. Para os que dão as cartas.

Reler os Estatutos na hora extrema da partida do poeta-anjo-de-branco é acender um facho ante as brechas do túmulo da Carta promulgada.

Não é por falta de Carta que o Brasil é atrasado. Cartas “não mentem, jamais”? Fazem da utopia a ilusão; criam a irrealidade.    

        

Fonseca Neto, historiador, Cadeira 1, da APL. 

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Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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