In Dubio pro Societate?


Jacques-Louis David – Morte de Sócrates

Jacques-Louis David – Morte de Sócrates Foto: Reprodução/Google

O julgamento de Sócrates é um bom exemplo de uma condenação baseada somente em fofocas e intrigas. Corria em Atenas que o filósofo grego desvirtuava o caminho dos jovens com seus discursos e blasfemava contra os deuses. Nada disso nunca foi confirmado.

Porém, mesmo assim, para o bem da polis, a sociedade da época, Sócrates foi condenado a se envenenar com cicuta. In dubio pro societate.

O relatório apresentado no último dia 10 pelo relator da denúncia por corrupção passiva apresentada pela Procuradoria Geral da República contra o presidente Michel Temer, deputado Sérgio Sveiter (PMDB-RJ) incluiu uma frase em latim: “in dubio pro societa”(sic).

Primeiramente, o termo correto seria “in dubio pro societate”, o que significa “na dúvida, que se decida pelo bem da sociedade”.

O advogado de Temer, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, na mesma sessão, se insurgiu contra o relatório afirmando que a Constituição teria sido ferida porque o Estado de Direito afirma que “in dubio pro reo “, que significa “na dúvida, que se decida pelo réu, ou seja, é o princípio da presunção de inocência.

Salvo engano, que o ilustre colega colunista Joaquim Lourenço poderá corrigir, Mariz estava certo.

Mas Mariz também cometeu um erro ao afirmar: “É mentira que o presidente da República haja recebido um vintém!” Ato falho?

Vamos analisar a frase de Sveiter, “na dúvida, que se decida pela sociedade”.

O inglês John Stuart Mill em 1861 publicou sua obra “O Utilitarismo”. Mill teve grande influência do filósofo também inglês, Jeremy Bentham e se perfila ao lado de outro filósofo utilitarista, Nicolau Maquiavel.

O utilitarismo de Mill afirma que as ações são boas quando tendem a promover a felicidade de um grupo social e más quando tendem a promover a infelicidade desse mesmo grupo social.

Pode parecer simples e lógico, mas a extensão do que ele quis dizer é muito mais  complexa que isso.

Para ilustrar vou relatar um caso verídico.

Lá pelos anos 80 um amigo meu trabalhava como chefe do controle de qualidade da Honda em São Paulo.

A montadora de motos se instalara há apenas alguns anos e procurava atender à grande demanda por veículos mais econômicos no mercado aquecido pela crise do petróleo. Além do mais, sua concorrente direta, Yamaha, também disputava o mercado.

Richard, como ele se chamava, recusou um lote de peças de freio que acabara de chegar porque constatou ao microscópio que havia trincas que poderiam causar acidentes em caso de frenagem mais brusca.

Meu amigo foi chamado à sala do presidente da companhia no Brasil, um japonês de comportamento imperial.

Richard recebeu a ordem de aprovar o lote mas recusou.

Como resposta, o japonês o demitiu.

Segundo o utilitarismo de Stuart Mill, o presidente da Honda estaria certo em demitir Richard e autorizar a montagem com o sistema de freios deficiente.

Por que? Uma vez que a montadora produzia milhões de motos no mundo inteiro, o que significariam algumas centenas de peças com defeito?

E mais, caso acontecesse um acidente, o que significariam algumas mortes ou alguns ossos quebrados diante do lucro que a empresa teria? E se as peças fossem recusadas, quais seriam os prejuízos pelos atrasos no fornecimento, ainda mais com o concorrente em seus calcanhares? Tudo isso foi avaliado pela empresa.

Foi preciso o sacrifício de alguns para o bem estar da empresa. Nada mais útil.

A teoria foi mais tarde contestada pelo seu baixo grau de humanismo porém continua a ser muito praticada pelo capitalismo que precisa sempre de maiores lucros, mesmo que à custa de alguns.

Por isso, embora concorde que Temer, cujas evidências contra si são claríssimas, seja denunciado ao STF, acho que Sveiter poderia prescindir de sua frase dita mais para demonstrar alguma erudição e conhecimento jurídico do que para convencer os membros da comissão.

Poderia pelo menos tê-la dito corretamente.

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Fernando Castilho

Fernando Castilho

Arquiteto, Professor e Escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, A Sangria Estancada
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