Artigo Fernando Castilho: Por que não choramos nossos mortos?


Cândido Portinari - Enterro na Rede, 1944

Cândido Portinari - Enterro na Rede, 1944 Foto: Divulgação

Em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens de 1755, o filósofo suíço, Jean-Jacques Rousseau nos explicou que os seres humanos, uma vez tendo abandonado lentamente o nomadismo, fixaram-se à terra e dela começaram a tirar seu sustento.

Outros homens, por ainda se manterem nômades, não compreendiam o direito que alguém tinha de se apossar de uma porção de solo que sempre foi de todos. A disputa por terra e propriedade apenas começava.

Com a criação do Estado e consequentemente das leis, ficou assegurado a quem tinha cercado um pedaço de terra para plantar ou criar animais, o direito de propriedade.

Na quinta-feira, 25, dez pessoas foram mortas pela polícia durante ação de reintegração de posse dentro da fazenda Santa Lúcia em Pau D'Arco no Pará.

As opiniões sobre o ocorrido variam mas a maioria das pessoas tende a criminalizar as vítimas por serem invasoras. Segundo elas, o direito de propriedade é sagrado e assegurado pelo Estado.

Tudo bem, caso esse direito tivesse sido outorgado por Deus em pessoa. E se lá na origem, o Estado tivesse tido a intenção de proteger grandes áreas improdutivas. Houve várias tentativas do Incra para desapropriar a fazenda para fins de reforma agrária.

Sabe-se hoje, por testemunhas, que a polícia, órgão do Estado, chegou atirando sem dar chances aos posseiros.

Sempre haverá pessoas que farão julgamento apressado pelo fato de a polícia ter apreendido várias armas. Gostaria de saber o que já teria acontecido antes se os posseiros não vivessem armados.

No domingo, 4, ocorreu um atentado terrorista que culminou na morte de dez pessoas, como na fazenda Santa Lúcia. O fato se deu em Londres. O Estado Islâmico reivindicou a autoria.

Antes, no dia 22, outro atentado tirou a vida de 19 pessoas, também na Inglaterra.

O mundo inteiro entrou em comoção pelos atentados terroristas. A Globo dava flashes de meia em meia hora.

Qual a diferença entre as mortes ocorridas na Inglaterra e no Brasil?

A Folha de São Paulo, hoje, dia 5, publica uma matéria que demonstra muito bem o quanto se mata no Brasil.

O Atlas da Violência afirma que em 2015 houve 59080 homicídios, uma taxa de 28,9 por 100 mil habitantes.

Para se ter uma ideia dessa dimensão, esses números significam que em apenas três semanas, o total de assassinatos no Brasil supera a quantidade de pessoas mortas em todos os ataques terroristas que aconteceram no mundo neste ano!

Outros dados que nos saltam aos olhos é a grande porcentagem de jovens, negros e mulheres pobres mortos pela polícia. Logicamente temos que lembrar que entre eles também há os que morreram em confrontos e que nem todos foram vítimas indefesas e injustiçadas.

Mas enquanto no mundo inteiro o Estado Islâmico assume a autoria dos assassinatos em atentados terroristas, no Brasil, a instituição Estado é a responsável pelas mortes. E em múmero muito maior.

Pergunto: pode uma instituição legal matar muitas vezes mais que uma organização ilegal?

Pergunto mais: Esse “terrorismo” no Brasil se torna manchete no mundo inteiro? Ou isso é uma das várias mazelas que temos que esconder?

Enquanto escrevo, leio os comentários dos leitores da Folha sobre o Atlas da Violência.

Então percebo horrorizado que esses tristes acontecimentos já são encarados com naturalidade e que o ódio parece estar tão disseminado nos leitores que eles já não se importam mais com a vida humana.

Pelo menos a vida dos pobres brasileiros.

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Fernando Castilho

Fernando Castilho

Arquiteto, Professor e Escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, A Sangria Estancada
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