Proa & Prosa

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Quibanos, tachos e panelas

Arroz branco, o cozido comum, servia de base a praticamente todas as comidas do sertão

Fonseca Neto

Quarta - 04/08/2021 às 06:09



Foto: Divulgação Comidas do sertão
Comidas do sertão

Todo lugar tem essas artes, de comer, beber e curar... Aqui falo das minhas pertenças do sertão do Maranhão, lá nas ribeiras do rio Inhumas. Cinco a seis décadas no passado.

Nas coisas de usança para preparar o de comer, também o pilão, cuia e espeto...  O de beber na cabaça, pote e quartinha. Fosse mais rico, tinha filtrão de lajeiro.  

Fizéssemos uma cartografia do que se come e bebe nos sertões de dentro do Brasil, achávamos um paraíso saboroso e sem par. 

Brasil, país, ou países, na zona tropical, chamado desde o ano de 1500 de América Portuguesa,  tinha um manancial comível de fazer inveja: plantas que frutificam, dão de beber, de comer, que curam, e as que se comem as folhas, raízes, o caule; bichos, miúdos e graúdos, que mamam, voam, nadam. Inclusive plantas e bichos importados e miscigenados no intercâmbio colonial de sangue com outras espécies, das Índias asiáticas,  Áfricas, Caribe... De maias, euros, incas e astecas.  

Exemplifico com o que cresci no lugar da Passagem da minha nascença: 

Feijão misturado – o que chamam em Teresina de “baião de dois”; feijão à parte, cozido e feito em caldo, apartado do arroz – havendo, era feito com costela de gado, do sol, picado de toucinho ou abóbora; feijão verde, a preferência é o feito misturado, porque, cozido à parte, não engrossa o caldo. Nordestinos por lá retirados, com fome, comiam um feijão-do-mato chamado fedegoso... Fava? A rainha dos feijões, delícia principesca; tem a branca, a parda, pequena e grande, mas a rajada, insuperável, a que chamada “boca de moça, pois é pintada e gostosa”. 

Arroz branco, o cozido comum, servia de base a praticamente todas as comidas do sertão; arroz de maria isabel, cozido com carne bovina seca e picadinha; arroz doce, feito com grãos não de todo maduros leitosos (comida quaresmeira); arroz com abóbora, feito com pedaços dessa espécie, e eventualmente, mas raro, o jerimum; “arroz com gordura”, tempero agordurado ligeiramente para ter sabor, corante, cheiro verde, ... 

Comida de galinha. Os capões: prato mais fino de nossa terra, além de ser comida especial das paridas, “de resguardo”; os bichos deviam ser erados, bem capados, cevados em chiqueiros asseados. Cozidos em caldo simples, ou feitos “de molho pardo”, isto é, preparados com o sangue da própria ave, aparado na sangria. E o pirão é do caldo da galinha de parida. Pinto é caldo de doente e capão cheio assado era coisa de ricaço. Ah! Dessa espécie, bicho apanhado no terreiro ninguém comia “com a boca toda”. E no preparo, pela arte da terra, bicho de asa só se corta nas juntas.   

Cozidões, guisados, assados, o batido: aqui são os modos de fazer da carnagem em geral. Bode se comia cozido e o carneiro bem fritado. Bode é no leite de coco, sem abóbora e nada mais. De bois gordos que eram raros, de tudo deles se fazia bons pratos – o bom conforme o alcance, gosto e posse do esfomeado. Carnes maciças pros remediados e a ossama pros mirinhados. Fato, bofe, cabeça, pros deserdados. Coração, língua e fígado, mais do paladar de vaqueiros e marchanteiros. 

Das leitoas e dos capados também só se comia se cevados. Nunca varapaus e barrões. Costelame pro guisado e os colchões pros assados, servidos com arroz e fava. Banha e toucinho pros temperos. Mas de uns e outros o bom mesmo era linguiça, seu tempero uma arte, na tripa seca do boioso.  

Das farinhas de mandioca, a mais gostosa, a seca e a de puba. E de suas massas em geral, a tapioca dos beijus. Mas o melhor beiju, o da massa de suspiro. Da puba, o grolado e os bolos. Da macaxeira, a raiz cozida; a batata doce, adoçada com mel de tiúba ou de cana. Massas de milho e de arroz, a delícia de cuscuz de boca de panela. A massa de araruta, tão especial, para as papas primeiras de desmamados recentes. Papa de enfermos.       

Na casa dos abeirados, nos puxadinhos e trempes da cozinha, franiscos de carne seca, caldo ralo com abobrinha em picadinho, inhame, batata, quibebe.

Fato de porco? Só nordestino comia. Eca! Resmungavam os da terra: enterre-se nos fundos do cercado. 

A doçaria da boa terra, de tudo se comia: de buriti, de batata, cajuí, cajuá e caju manso. De encascado de mamão verde e de laranja da terra; de banana e bacuri. De figo e de goiaba. Os de leite, um deleite, tinha o liso e o caroçado, de ambrosia o mais chic. Da fineza cozinhária, o pão-de-ló era o rei.

Dos beberes, as samberebas, de buriti e cajá; do maracujá o refresco, do jenipapo o licor, da casca de inharé a garrafada. A laranjada no estilo, da caramba, a carambola.  

As caças? Hábito havido por normal, depois que mataram tudo, agora só devastação.      

A minha, também era terra de canavial, tinha garapa, mel quente, rapadura e pé de cocho... Tijolos e alfenim. E depois direi o fim.              

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Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

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